Jaqueline e Joana

14_Jaqueline e Joana

 

 

Joana já passou por isso, eu não. Ela já passou pela situação de estar com uma namorada, dar um beijo e ser expulsa do lugar. Eu nunca passei, mas pensava “E se eu passar, o que vou fazer?” Dizer que ela é minha namorada e apelar para os direitos humanos? É muito mais importante tirar uma certidão de casamento e poder falar “Somos casadas. Ela é minha esposa. A justiça reconhece minha união e você tem que respeitá-la também”. Isso foi um ponto muito importante para decidirmos nos casar oficialmente. O pai dela fez questão de mostrar para todo mundo que estávamos nos casando, não quis que fosse um casamento escondido, fez questão de fazer uma festa, de nos apresentar para a sociedade.

Para o casal heterossexual, o revolucionário é não casar, é só morar junto, abrir mão dessa coisa tão batida que é o casamento. Com a gente acontece o oposto: exercer o direito ao casamento civil, isso sim é revolucionário! É engraçado como os valores se invertem. É muito importante exercermos um direito que foi conquistado. Porque direito que não é exercido é direito perdido. Foi isso que nos moveu ao casamento civil e ao casamento religioso também, que aconteceu numa cerimônia budista.

Tanto é diferente que a minha mãe, que já sabia que eu saía com mulheres, que já tinha conhecido várias namoradas minhas desde que eu tinha 15 anos, quando eu falei para ela que nós íamos nos casar, ela surtou. Na festa de casamento, ficou chorando. Não eram lágrimas de alegria, eram de desespero. Tipo assim: não tem mais como ocultar, não tem mais como esconder da família, das outras pessoas… Quando perguntarem “Quem é aquela menina?”, não dá mais para falar “Ah, é uma amiga da minha filha”. Não, não é uma amiga, é a sua esposa, sua mulher.

E se em algum momento nós passarmos por uma dificuldade de saúde, quem vai entrar no quarto do hospital, sem problemas, seremos nós. Não vai haver aquela situação constrangedora do tipo “Quem é você? Você não pode entrar porque não é da família.”

Isso mexe com a cabeça das pessoas. A sociedade é machista. É muito importante a gente lutar pela mudança. É uma mudança cultural. Mas também é preciso ser generoso quando se percebe que existe alguém que não entendeu ainda – porque a forma como reagimos é o que a pessoa vai tomar para se transformar, para sair daquilo ou para se apegar àquilo cada vez mais. Por isso é importante acolher o que o outro ainda não entendeu, o que ele precisa entender. Eu mesma, quando me descobri gay, levei um tempo para me aceitar; quando tive a primeira namorada, pensava “Eu não sou gay, sou hetero, mas ela é uma pessoa especial”. Depois fui percebendo que não era bem assim. Se você mesma leva um tempo para se aceitar, para entender o que está acontecendo, acho que tem que dar um tempo para as outras pessoas também, para elas verem que é uma coisa normal, que ser gay não é nenhum bicho de sete cabeças.

Jaqueline Vasconcellos Carvalho (atriz) e Joana Vasconcellos Carvalho (professora de educação física), juntas desde 2013.

Léa e Malu

13_Léa e MaLu

 

 

+ PEU E PEDRINHO

As estatísticas são muito tristes. Um adolescente gay tem seis vezes mais chances de tentar o suicídio do que outro adolescente. Isso é grave demais. Como professora, consigo perceber no meu cotidiano como a homofobia e a transfobia são danosas no ambiente escolar. Minha militância passa por esse lugar, de lutar contra a exclusão homofóbica e transfóbica na escola.

O nível de escolaridade das travestis é muito baixo. Quando elas começam a entender, a construir uma identidade de gênero, com onze, doze, treze anos, é quando a escola começa a rejeitá-las, é quando a família as joga na rua. Quem as acolhe? Sem escolaridade, como é que elas vão trabalhar? Como vão construir um itinerário profissional? Isso é gravíssimo na nossa sociedade e precisa ser discutido a fundo.

Nossa editora, a Metanoia, é especializada em literatura homoafetiva e teologia inclusiva. Nós defendemos a teologia inclusiva, em primeiro lugar, porque é escrita por pessoas muito sérias, por teólogos que estudam o contexto da bíblia dentro da antropologia, da sociologia, da psicologia, enfim, que usam ferramentas que a ciência fornece para desconstruir o discurso homofóbico. Ela também é conhecida como “teologia queer”.

Qual seu grande mérito? É que ela usa a linguagem teológica, a linguagem da crença – que não é a mesma linguagem da ciência. Quando você encontra um fundamentalista raivoso e usa um argumento científico (como já vimos em vários debates), o diálogo não acontece. Porque a linguagem dele é a teológica, a linguagem mitológica da bíblia. O imaginário dos fundamentalistas religiosos é totalmente diferente do ideário da ciência. Eles caminham paralelamente. Mas se você estuda teologia inclusiva e aprende a desconstruir os argumentos da exclusão e dos preconceitos que se baseiam na literalidade da bíblia, os fundamentalistas perdem seus argumentos. Porque eles não estudam, eles só repetem o que leem. Eles não vão ao contexto histórico, não sabem fazer uma leitura crítica.

Nós somos militantes. Na passeata, na caminhada pela liberdade religiosa, nós estamos lá. Na parada gay, na caminhada de visibilidade lésbica, estamos lá também e por aí vai. Nós temos um papel político. A gente acredita que nossos livros podem abrandar esses discursos calorosos em que as pessoas usam argumentos da religião para excluir outras pessoas. Na verdade, nossa literatura desconstrói esses discursos; a partir daí fica muito mais fácil conversar, construir pontes com as diferenças. Partindo do discurso teológico inclusivo, em vez de você construir muros, você constrói pontes entre as pessoas. Nós lutamos por isso, por uma escola inclusiva, uma Igreja inclusiva, uma sociedade inclusiva.

Léa Carvalho (professora e produtora editorial) e Maria Luiza Santos (designer gráfico), juntas desde 1998.

Claudia e Flavia

12_Claudia e Flavia

 

 

Quando a gente se conheceu, já na segunda vez que saímos, fomos tomar um vinho no Empório Santa Fé e fomos muito maltratadas. Estávamos naquele início de namoro, trocando carinho, e o casal da mesa ao lado se sentiu incomodado, ou agredido, e falou com o maitre. Daí a pouco ele veio até a mesa e disse “Vocês podem se conter? Podem aprender a se controlar?”, entre outras coisas… Nossa, foi o maior baixo astral! Eu fiquei com vontade de morrer, mas a Flavia reagiu: “O senhor sabe que isso é crime, não sabe?”. Acabou nossa noite, pagamos a conta e fomos embora. Para piorar a situação, na hora que estávamos saindo, o dono veio todo grosseiro dizendo “Isso aqui é um lugar de família” e mais não sei o quê, até a mulher dele veio meio que aparando… Eu não me contive e falei para ela “Deve ser muito difícil ser casada com um senhor desses!”. Ele ficou muito puto e parecia que ia bater na gente. Nós saímos. Isso foi numa sexta-feira; passamos mais dois dias com aquela sensação ruim e, então, concordamos que era preciso fazer algo.

Na época, ainda funcionava a 9ª DP ali no Catete. Fomos lá fazer um registro de ocorrência. Eu já cheguei ao balcão falando para o policial “Quero fazer uma denúncia porque fomos vítimas de homofobia”. Aí o cara ficou todo perturbado, “Não sei o que fazer, não posso fazer nada”. Nós insistimos: “Quer dizer que viemos aqui para registrar uma ocorrência e não seremos atendidas?”. O cara teve que engolir em seco e falou com um tal inspetor Fernando, que foi quem resolveu, que chegou e falou “Vamos tentar resolver essa coisa, mas vocês vão ter que fazer uma acareação.” Foi uma cena! A gente teve que voltar ao restaurante dentro da viatura da polícia, de sirene ligada, na contramão. O carro parou na porta, foi horrível. Entramos e identificamos o maitre, “Foi ele!”. O dono não estava ou se escondeu, e a gente acabou levando o maitre para a delegacia. O cara só pôde pegar os documentos e entrar na viatura. Aí eles acionaram o advogado deles (que era o filho do dono), ele chegou lá gritando “Não fala nada! Não aconteceu nada!”, e a gente assistindo àquela cena. O inspetor Fernando colocou ordem: “Você cala a boca! Ponha-se daqui para fora! As meninas chegaram aqui no maior respeito. Você está pensando que isso aqui é o quê? Isso aqui é uma delegacia!” Foi uma baixaria completa…

E então fizemos o registro de ocorrência. Aliás, foi a primeira vez que vimos nossos nomes escritos como namoradas… Num registro de ocorrência! Se estivéssemos nos estapeando, provavelmente estariam rindo, não fariam nada, com certeza pensariam “É briga de mulher, devem estar brigando por causa de homem, depois se ajeitam”. Nossa relação já começou assim, com a gente sendo empurrada para batalhar pelo direito de existir como pessoas que trocam afeto em público.

Claudia Holanda (artista, jornalista, pesquisadora em som e música) e Flavia Meireles (artista, professora e pesquisadora em dança), juntas desde 2011.

Roberta e Gisa

11_Roberta e Gisa

 

 

Nós nunca colocamos as coisas de forma rotulada: “é um casal gay, não é um casal gay”, não existe isso. A resposta que a gente dá para a sociedade são as nossas atitudes. Quase todo mundo acha que gay é à margem da sociedade, meio delinquente, drogado, corrupto, depravado, promíscuo, não sei mais o quê. Aí, de repente, vê duas pessoas caretas, que trabalham à beça, e não entende nada.

A gente acorda todo dia às cinco, seis horas da manhã, ganha nosso sustento, vive conforme nossas condições; o que conseguimos na vida foi porque batalhamos para ter e continuamos batalhando para melhorar mais ainda. E é isso. Essa é a resposta. É assim que a gente responde: com atitude. Enquanto o outro acha que eu sou uma depravada, uma promíscua, eu estou trabalhando, vivendo minha vida.

Mas tem coisas que me incomodam. As pessoas, quando olham um casal heterossexual, em geral não pensam como eles fazem sexo. Mas quando é um casal homossexual, a primeira coisa que vem à cabeça é a configuração na cama, tipo “quem é o homem, quem é a mulher”. Elas precisam perguntar “E aí, quem é o ativo? Quem é o passivo?”. O quê?! Não sei nem o que é isso! Já ouvi essa pergunta algumas vezes, inclusive na minha própria família, e acho grosseiro demais, no mínimo indiscreto. Como se só existisse isso, homem ativo / mulher passiva. Que falta de criatividade!

No casamento da minha irmã, nós entramos juntas como madrinhas. Houve certa tensão… A cerimonialista, incomodadíssima, queria até o último momento trocar os pares, pegar os primos. No final, eu já quase me dando por vencida, o noivo teve um ataque: “Vocês são nossas madrinhas e vão entrar juntas!”. E foi a primeira vez de verdade que aparecemos juntas para a família inteira, como um casal, não apenas como duas pessoas que moram juntas e que podem ser amigas. Foi um reconhecimento oficial, mesmo.

Quando recebi o convite para participar do Nomes do Amor, cogitei a hipótese de não participar por receio do que as pessoas diriam, que tipo de conceito, de preconceito, elas poderiam ter sobre nós. Mas, ao mesmo tempo, fiquei pensando que isso não poderia ser mais forte do que a minha personalidade, do que a minha vontade, a minha vida. Eu não estou fazendo nada de errado, muito pelo contrário. Estou trabalhando de forma digna e afirmando valores, coisas que eu acredito que sejam fundamentais para a construção de uma sociedade justa, com mais educação e cidadania.

Essa coisa de rótulo tem que terminar. Estamos falando de preconceito contra o gay, mas também contra o bi, contra o negro, contra o índio… Você tem que olhar para o ser o humano como uma pessoa, olhar os valores morais dele, o que ele faz, o que acrescenta. Acho que nossa luta é única, é por direitos humanos. Somos todos iguais.

Roberta Macedo (gerente de projetos sócio culturais) e Gisa Colombo (arquiteta), juntas desde 2000.

Adriana e Taciana

10_Adriana e Taciana

Antes mesmo de registrar a união estável, já era estabelecido que a gente era um casal. A gente não namorou, nós nos casamos. Nos conhecemos no carnaval e ficamos juntas três dias; no quarto dia, quando ela ia embora, eu falei “Você quer casar comigo?”. Foi assim, de supetão. Eu não sabia se iria me arrepender depois, não sabia se ela iria aceitar, enfim… Ela me olhou e disse “Eu quero. Também não sei se vou me arrepender daqui a 15 dias, daqui a um mês, daqui a um ano…” E lá se vão 20 anos. Uma amiga que nos encontrou nesse dia, por acaso, jogando sinuca num bar, falou “Nossa, para uma quarta-feira de cinzas vocês estão com cara de terça-feira gorda!” E foi muito legal. A gente se casou e, logo, também nossas famílias se casaram. Todos os pais e irmãos, os meus e os dela, se dão muito bem. Desde pequenos, nossos sobrinhos e, mais recentemente, os sobrinhos-netos, frequentam nossa casa e convivem normalmente com o fato da tia Tá e tia Dri serem casadas.

Também entre os vizinhos, ou no trabalho, nunca nos faltaram aceitação nem acolhimento. Quando eu trabalhei numa escola estadual aqui no bairro, tive uma diretora que sonhava em conhecer minha casa. Isso ela só me confessou algum tempo depois que a convidei para um almoço. E ela disse “Adorei conhecer sua casa. Eu não imaginava que duas mulheres que vivem juntas tivessem uma casa tão bonitinha assim, com liquidificador, batedeira, tudo arrumadinho. Eu não fazia ideia que fosse uma casa tão normal”. As pessoas que nunca conviveram com isso fantasiam muito a respeito e acabam criando alguns fantasmas.

Eu acho que a família é a coisa mais importante que a gente tem. E quando são cultivados esses valores fundamentais, como o respeito, a amizade, o companheirismo, a cumplicidade de qualquer forma, de pai com filho, de irmão com irmão, de mulher com marido, de mulher com mulher, de professor com aluno, enfim, em relações diversas, quando há respeito, quando isso atravessa toda a sua existência, acho que tudo flui melhor.

Acima de tudo, antes de ser um casal de mulheres ou um casal de homens, é um casal. Nós somos um casal de pessoas que se amam, independente do sexo, e que deu certo em sua relação. Nós aprendemos a nos amar com o tempo. Aprendemos a nos amar de verdade. Eu acho que os valores passados pelas nossas famílias foram essenciais nesse nosso caminhar. O mais importante é você ter respeito pelas pessoas, ter amor. Uma vez eu perguntei para o meu pai, que é a pessoa que mais importa para mim, se ele gostaria que eu fosse casada com um cara. Ele me disse “Eu te amo e quero sua felicidade”. Então, o mais importante é isto: se houver respeito e amizade, em qualquer tipo de relação, tudo flui normalmente.

Adriana Cardoso (professora) e Taciana Tavares (advogada), juntas desde 1996.

Rodrigo e Gilberto

9_Rodrigo e Gilberto

 

+ PAULO HENRIQUE

Já vivemos algumas situações de racismo com o Paulo que nos incomodaram muito. Foram situações que, talvez, não tivessem acontecido se fosse pai negro e filho negro, pois nos identificariam como família. É um racismo muito focado nele e só acontece porque ainda somos muito racistas. Mas, se você pensar bem, não é só discriminação de raça, é uma questão de ainda não se ter percebido que hoje não se pode mais julgar se as pessoas são da mesma família só porque se parecem ou não. De repente, um cara japonês e uma mulher loura podem ter um filho negro, e isto é uma família.

Existe essa questão da configuração de família que a gente precisa brigar agora para mudar. Não pode mais ser do tipo “Ah, tem um narizinho igual ao da mãe, o cabelinho igual ao do pai”, não é mais isso. Nós estamos juntos, tem amor ali envolvido. Qualquer configuração que seja, é família. Não dá para julgar pelo físico, não.

Hoje vemos uma mudança lenta e gradual dos casais, o que chamam de “normatização da homossexualidade”. Eu não vejo nestes termos, pois têm uma conotação ruim, como se ser normal fosse ruim; há uma tendência a enquadrar as pessoas. A homossexualidade sempre foi subversiva, estava ligada aos guetos, à sexualidade, liberação, libertinagem, àquela coisa subversiva. E não tem coisa mais subversiva hoje em dia do que pegar uma criança e levá-la para uma festa infantil com dois pais. Tem um ar de normalidade, mas é subversivo enquanto o Brasil não for como a Suíça. A gente não é Suíça. Eu não estou querendo ser “normal”, estou querendo ser igual a todo mundo, ser reconhecido pela minha personalidade, pela minha história, minha família. Sem tentar explicar “como pode” essa família de dois homens querer ser normal!

A maioria dos nossos amigos não é gay. A minha rotina de vida não é uma rotina do “estilo de vida gay”. Eu não vou para a academia, não me meto em boate, não tenho essa coisa de só ter amigo gay. Desse “estilo” a gente pouco faz parte, porque nossa rotina é de trabalhador, ainda tem que arrumar a casa, fazer comida, levar nosso filho para a escola, para a natação… Tem que trabalhar, botar grana, pagar os mesmos impostos. E às vezes a conta está apertada, o salário não entrou…

Nós já passamos pela nossa fase de sair, curtir. Se você for pela primeira vez a uma boate gay, é uma coisa fantástica. Porque você percebe que há pessoas iguais a você e que fazem coisas que você faz, que você gosta, e são “normais“. É uma descoberta. Mas passa, como tudo na vida. Então você entra em outra fase. Inclusive essa fase do gay contestador misturado com essa questão sexual, hipersexualizada, hipermarginal, essa fase, essa estratégia, ela envelheceu também. A estratégia agora é outra. É entrar no sistema e subverter de dentro para fora. É mais inteligente, nossa onda agora é essa.

Rodrigo de Mello (corretor de imóveis) e Gilberto Scofield Junior (jornalista), juntos desde 2002.

Alfredo e Pedro Paulo

8_Alfredo e Pedro Paulo

 

Fui criado numa cidade do interior de Minas Gerais, carregada de preconceito, mas desde os 12 anos eu já sabia o que queria e a todo momento tentei buscar minha identidade sexual. Com 15 anos fui para a capital estudar, foi quando minha família soube. Tenho uma tia casada com outra mulher há 30 anos; assim, quando resolvi me assumir, foi muito menos doloroso para mim e para os outros, porque ela é uma pessoa que tem moral, tem princípios éticos e tudo o que as pessoas naquela época imaginavam que os gays não tinham. Ela já tinha provado que poderia ter um casamento firme, duradouro e ao mesmo tempo ser uma excelente profissional. De certa forma, elas são o modelo de família para a família inteira. Não só o modelo para os gays e lésbicas (que são muitos), mas também para os heterossexuais. É na casa delas que acontece o Natal todos os anos, isso é muito bacana.

Mas, apesar disso, de elas serem referência clara para todos, a união nunca foi verbalizada, elas nunca haviam se assumido como casal. A primeira vez que fizeram isso foi no nosso casamento. Quando perguntaram aos presentes se alguém tinha algo a dizer, uma delas se levantou e falou: “O que vocês estão fazendo é algo que a gente nunca conseguiu fazer em 30 anos. Por isso esse é um dia muito especial para nós”. Não foi surpresa para ninguém, mas foi a primeira vez que se falou sobre isso.

Em relação à condição homossexual, acho que existe, sim, uma opção: você ser feliz com ela. Isso é uma opção. E tem gente que opta por não ser feliz. Se existe uma opção nessa história toda, é a de se assumir. Mas, ontogeneticamente falando, ou seja, se eu posso optar ou não por ter o desejo que eu tenho ou ser o que sou, não acredito. E não acho que isso seja uma questão genética, sinceramente; não sei se podemos botar na conta da genética aquilo que não é opção. Ninguém conscientemente opta por viver a homofobia, por não poder expressar afeto em público; ninguém optaria por ter que esconder a pessoa que ama do restante da sociedade. E isso nós fazemos todos os dias. Por mais que sejamos abertos, que não tenhamos nenhum tipo de questão com isso, todos os dias a gente precisa, de certa forma, camuflar aquilo que sente. Então, não, isso não pode ser opção. Só é desta forma porque a sociedade entende que isso é um problema.

Agora, o que faz com que a gente ainda assim enfrente tudo, ou seja, com toda a homofobia que se vive no mundo, com toda a falta de respeito, eu acho que é muito desejo. É muito desejo e é muita saúde psíquica, porque você enfrenta toda uma maré política, histórica e social em nome daquilo que você acredita, sente e quer. A opção é isso, é você viver uma vida sem questões, mesmo quando a sociedade toda te coloca isso como uma questão. Se eu conseguiria não desejar, aí é outra história. Mas, como não tenho a menor pretensão de deixar de desejar da forma como desejo, isso para mim não é um problema.

Alfredo Assunção (administrador, doutorando em psicologia) e Pedro Paulo Bicalho (psicólogo, professor universitário), juntos desde 2011.

Marc e Daniel

7_Marcelo e Daniel

 

 

+ LOLA

Uma coisa que eu vejo é o preconceito do próprio gay, que quando se descobre gay, acha que não pode ter uma vida normal. Que tem que viver no gueto, se esconder. Acho isso muito venenoso. O legal deste projeto é fazer vir à tona a normalidade da nossa vida em família.

A gente já conviveu com vários gays que, quando souberam que temos uma filha de 12 anos, ficaram assustados. “Mas você tem uma filha, como assim?”. Parece quase de outro mundo. Os preconceitos da sociedade estão enraizados também na cultura dos gays, que acham que têm que viver isolados, nunca ter um namoro sério, jamais um casamento, e muito menos um filho. Nesse meio, os estereótipos se reforçam. Principalmente o gay masculino não se imagina tendo filho. Uma lésbica pode pensar nisso, ela pode gerar um filho. Um homem gay, por não poder gerar, nem pensa nessa possibilidade. Perdi amigos gays porque fiz uma adoção. Tive amigos que falaram ”Você é louco!” e se afastaram mesmo de mim.

Eu nunca tive muito o hábito da vida noturna, de fazer programa tipicamente gay. Eu nem gosto de programa gay, eu gosto de programa bom. Eu gosto de gente, não de um só gênero. Eu confronto até hoje alguns amigos sobre isso. Às vezes, quando convido “vamos a uma festa?”, a primeira pergunta que fazem é se a festa é gay. O que importa se é uma festa gay? É uma festa de gente, gente feliz. Parece até um medo do tipo “eu posso sofrer alguma retaliação se estiver num ambiente onde não sou aceito”. Mas, na verdade, se a gente não se coloca com respeito e dignidade em todos os ambientes, não seremos aceitos em lugar nenhum, sendo gay, sendo hetero ou não sendo nada. Eu defendo a dignidade, defendo que tenho o direito de ser feliz como qualquer outra pessoa, independente das minhas escolhas.

Tem quem fale que eu sou quase um gay homofóbico. Eu respondo “Homofóbicos são vocês, com vocês mesmos!”. Sabe aquele tipo que se faz passar por bofe? E quando você pergunta por que ele age assim, ele diz “Ah, porque assim você pega mais caras”. Hããã?! Aí você percebe uma fala que ainda é enraizada no preconceito, enraizada no machismo, no paternalismo, do pai, do avô, e também da mãe e da avó passivas, submissas, da mulher submissa. Eu fico apavorado quando vejo esse tipo de coisa. Acho muito doido, não entendo. Mas também evito fazer julgamentos sobre as pessoas que têm esse preconceito ainda tão potente na vida delas, mesmo sendo gays. É difícil, a gente não sabe a história delas, o quanto precisaram dessa posição de defesa, de ter que ter armaduras e tudo o mais.

Já eu não tive esses problemas, desde muito novo me aceitei, foi natural. Por isso eu fico muito assombrado, até pela potência negativa que esse tipo de coisa tem, de você não se aceitar, de não se assumir, seja no que for – não importa a escolha que você faça.

Marc Kraus (artista visual) e Daniel Wagner (maquiador), juntos desde 2010.

Xan e Vitor

6_Alexandre e Vitor

 

 

Por mais que isso possa ter sido um problema para a minha geração, me assumir gay nunca foi uma questão para mim. Tive pais muito amorosos, muito próximos. Estudei Comunicação, eu era um “bicho grilo”, então podia estar com garotos, com garotas… Eu apresentava todos para a família, sem o menor problema, e eles os recebiam com carinho e acolhimento. Sempre foi uma coisa natural.

Eu vivi isso na década de 80, no interior de São Paulo, numa cidadezinha muito pequena. Certa vez, muitos anos depois de ter saído de lá, voltamos eu e Alexandre para visitar a família e fomos à casa da Dona Maria, mãe da menina que cuidava de mim. Ela perguntou: “Esse é o seu companheiro?”. Ela usou essa expressão. Nós ficamos surpresos, era uma senhora de quase setenta anos. Que sabedoria! A gente não pode julgar nem subestimar ninguém. Às vezes, mesmo num ambiente cultural ultraconservador, há pessoas com outra visão de mundo.

Muitas vezes o preconceito está no próprio gay, na forma como ele se vê, como se coloca. Se você age com naturalidade, dependendo da forma como você fala de uma pessoa que ama, se você se coloca de forma amorosa, não tem como não ser bom. Nós temos uma participação direta na maneira como os outros nos acolhem. E tem que ser verdadeiro. Se não assumir seu parceiro dentro de você, como irá apresentá-lo para outra pessoa? É simples assim. Qualquer pessoa que goste de você terá capacidade para compreender isso. É como se dissesse “Ah, tá, então é essa pessoa que te faz feliz? Então ela é bem-vinda”.

De minha parte, eu sempre tive muito clara a minha condição homossexual, politicamente, socialmente, no trabalho… Antes de qualquer coisa tem que haver respeito, respeito pelo ser humano, independente de suas escolhas relacionadas a sexo, política e religião. E se você não estiver tranquilo com o seu tesão, sua vida, nada vale. Precisa estar inteiro: política, sexualidade, amor, trabalho, tudo junto. Eu sempre vivi politicamente. Digo isso porque acho que a gente tem que exercer nossa cidadania afirmando nossa sexualidade, as nossas escolhas amorosas. No trabalho, a gente tem que falar da nossa condição, sim. Na rua, passeando com seu cachorro, você tem que falar da sua condição, sim. Não é levantar bandeira, “Eu sou gay!”, mas “Oi, prazer, esse aqui é meu companheiro Vitor”, como qualquer hetero faria. Eu ser gay está em segundo plano, não importa. Importa que estou apresentando a pessoa que eu amo para mim mesmo, antes de apresentar para qualquer outro. Essa é uma conquista de todos nós. E precisa ser exercitada diariamente, independente de idade ou geração. Conquistei essa consciência aos 13 anos, quando me descobri gay, mas eu nunca fiz disso um problema. Se não for natural, vira um fantasma na sua vida, você não consegue viver inteiro.

Alexandre Farias (diretor de arte) e Vitor Zenezi (jornalista), juntos desde 2004.

Joana e Ique

5_Joana e Ique

 

 

Eu já nasci uma menina, sempre muito feminina e minha mãe sempre viu porque era óbvio. Além disso, criança fala o que quer, não tem noção de que é “errado” um menino querer ser uma menina, até porque não é errado mesmo. Minha mãe me apoiava, mas ao mesmo tempo ela tinha medo. Então ela apoiava e, às vezes, reprimia também. Mas se hoje eu tenho uma personalidade forte é em parte por conta dela, do tipo de criação que eu tive.

No dia em que coloquei um vestido pela primeira vez (eu tinha uns 21 ou 22 anos), ela falou para eu não fazer isso. “Eu vou colocar, sim”, disse. Era um réveillon. Em algumas ocasiões antes disso, ela já tinha me perguntado, supercordialmente, “Você quer colocar o vestido?”. Aí, quando eu quis mesmo, ela disse que eu não ia sair daquele jeito. “Então eu não vou, porque sem o vestido eu não vou.” E eu fui!

Algumas pessoas foram muito importantes para mim nessa época, me ajudaram a perceber que isso não era nada ruim, e que é necessário “ser o que você é”. E eu sempre acreditei nisso, que ser trans é uma coisa incrível. Também tomei contato com a teoria Queer, com alguns movimentos ativistas gays. Eu estava numa fase de transição e essa fase foi muito marcante porque eu não era nem “ele” nem “ela”. Depois passou, transitei e cheguei no “ela”, que era o que eu realmente sentia. Antes me chamavam apenas de Jô. Ainda chamam, eu adoro, mas agora meu nome é Joana. Ainda não fiz a modificação nos papéis; vou fazer, mas sei que é caro e demora. Eu não pretendo fazer a cirurgia de mudança de sexo porque é algo muito agressivo e não faz diferença no meu ser mulher, com esse dinheiro eu prefiro viajar bastante! Isso me faria sentir mais livre que uma operação.

Sobre preconceito, com certeza eu senti na pele, como todo mundo que foge da heteronormatividade. Mas, ao contrário do que possam pensar, as coisas mudaram muito – para melhor – depois que eu transitei de gênero, pelo simples fato de que agora eu sou lida socialmente como uma mulher, e bonita: isso não incomoda, isso agrada às pessoas. Trabalho com arte, então no meu meio social e de trabalho sinto o carinho e a admiração dos outros. Mas no prédio onde moro desde criança e hoje vivo com meu marido, onde as pessoas sabem da minha história, a coisa muda de figura: já sofri perseguição da antiga síndica e situações chatas envolvendo porteiros. Mas não devemos abaixar a cabeça e sim tentar fazer com que essas mentes pequenas entendam algo que na verdade é tão simples…

A família do Ique não lidava bem com o fato dele sair com homens, mas lidam bem com a nossa união. Porque, de algum modo, nós nos enquadramos numa visão heteronormativa; socialmente falando, somos um casal heterossexual e, de novo, isso não incomoda. Pelo contrário: nossas famílias se dão bem e ficam muito felizes com a nossa união.

Joana Couto (artista visual) e Ique Hillesheim (estudante de Serviço Social e Ballet), juntos desde 2012.