Eu já nasci uma menina, sempre muito feminina e minha mãe sempre viu porque era óbvio. Além disso, criança fala o que quer, não tem noção de que é “errado” um menino querer ser uma menina, até porque não é errado mesmo. Minha mãe me apoiava, mas ao mesmo tempo ela tinha medo. Então ela apoiava e, às vezes, reprimia também. Mas se hoje eu tenho uma personalidade forte é em parte por conta dela, do tipo de criação que eu tive.
No dia em que coloquei um vestido pela primeira vez (eu tinha uns 21 ou 22 anos), ela falou para eu não fazer isso. “Eu vou colocar, sim”, disse. Era um réveillon. Em algumas ocasiões antes disso, ela já tinha me perguntado, supercordialmente, “Você quer colocar o vestido?”. Aí, quando eu quis mesmo, ela disse que eu não ia sair daquele jeito. “Então eu não vou, porque sem o vestido eu não vou.” E eu fui!
Algumas pessoas foram muito importantes para mim nessa época, me ajudaram a perceber que isso não era nada ruim, e que é necessário “ser o que você é”. E eu sempre acreditei nisso, que ser trans é uma coisa incrível. Também tomei contato com a teoria Queer, com alguns movimentos ativistas gays. Eu estava numa fase de transição e essa fase foi muito marcante porque eu não era nem “ele” nem “ela”. Depois passou, transitei e cheguei no “ela”, que era o que eu realmente sentia. Antes me chamavam apenas de Jô. Ainda chamam, eu adoro, mas agora meu nome é Joana. Ainda não fiz a modificação nos papéis; vou fazer, mas sei que é caro e demora. Eu não pretendo fazer a cirurgia de mudança de sexo porque é algo muito agressivo e não faz diferença no meu ser mulher, com esse dinheiro eu prefiro viajar bastante! Isso me faria sentir mais livre que uma operação.
Sobre preconceito, com certeza eu senti na pele, como todo mundo que foge da heteronormatividade. Mas, ao contrário do que possam pensar, as coisas mudaram muito – para melhor – depois que eu transitei de gênero, pelo simples fato de que agora eu sou lida socialmente como uma mulher, e bonita: isso não incomoda, isso agrada às pessoas. Trabalho com arte, então no meu meio social e de trabalho sinto o carinho e a admiração dos outros. Mas no prédio onde moro desde criança e hoje vivo com meu marido, onde as pessoas sabem da minha história, a coisa muda de figura: já sofri perseguição da antiga síndica e situações chatas envolvendo porteiros. Mas não devemos abaixar a cabeça e sim tentar fazer com que essas mentes pequenas entendam algo que na verdade é tão simples…
A família do Ique não lidava bem com o fato dele sair com homens, mas lidam bem com a nossa união. Porque, de algum modo, nós nos enquadramos numa visão heteronormativa; socialmente falando, somos um casal heterossexual e, de novo, isso não incomoda. Pelo contrário: nossas famílias se dão bem e ficam muito felizes com a nossa união.
Joana Couto (artista visual) e Ique Hillesheim (estudante de Serviço Social e Ballet), juntos desde 2012.