Letícia e Ana

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+ ANDRÉ HENRIQUE E ANNA LAURA

Eu me dei conta de que era gay aos 21 anos. Fiz 50 agora. Nunca militei. O máximo que fiz foi brigar por direitos iguais no trabalho. Trabalhei muitos anos numa companhia aérea. Nessa época eu era casada com uma mulher que começou a trabalhar lá também. A empresa permitia que funcionários casados tivessem direito às mesmas escalas, mas não os casais homossexuais. No início, até conseguíamos conversar com o setor de escalas para nos dar escalas casadas na base da camaradagem. Depois, devido ao meu envolvimento na liderança de um grupo de funcionários em reivindicações, a chefia mandou separar nossas escalas. Fizeram, de propósito, uma escala totalmente oposta. Ficamos 60 dias sem nos ver; quando eu estava num lado do planeta, ela era mandada para o outro. O desfecho da história foi que eu entrei na luta junto com um grupo e criamos um problema tão grande na empresa que acabamos conseguindo mudar o regulamento e obter o mesmo direito.

Agora, com o famigerado Estatuto da Família, entrei na militância para valer: faço parte do grupo fundador da Associação Brasileira de Famílias Homoafetivas (ABRAFH). Se há quem pense que todo esse projeto de poder só vai mexer com o pessoal LGBTI, saiba que não. Isso é um projeto que pode mais tarde virar uma coisa parecida com a Alemanha da década de 30, e quando nos dermos conta, não haverá mais o que fazer. Olha o que o fundamentalismo está fazendo! Isso é ruim em qualquer religião. Religião é amor, não é discurso de ódio. Religião é dentro do templo, do terreiro, da igreja, é uma escolha. Orientação sexual não é escolha. Pecado é uma coisa da religião, lei é uma coisa do Estado, da constituição, e é para todos.

As pessoas reclamam muito. Nas redes sociais, por exemplo, elas gostam de falar “Isso está errado!”, “Isso tem que ser feito!”. Mas só é feito se alguém fizer. E, para alguém fazer, as pessoas têm que trabalhar juntas para ter uma força coletiva. Em geral as pessoas têm medo. Quando há alguém ali na frente botando a cara a tapa, muitos só sabem criticar. Certa vez, em um seminário, eu disse: “Gente, não se escondam! Se vocês têm esse direito, por que fazem isso?”. Aí alguém na plateia falou: “Ah, para você é fácil, pois você é branca, teve acesso à educação e tem uma família de loiros”. Então, a Viviane Mosé, filósofa, que nem é gay, pediu o microfone e deixou um recado claro: “Vocês estão discutindo quem é mais ou menos privilegiado? Somos todos desprivilegiados aqui. O pessoal lá fora que está nos criticando está muito bem organizado! Vocês vão querer criar racha aqui dentro?” O tema do seminário era “Mais amor, por favor”, e as pessoas queriam discutir quem é cis, quem é trans, quem é pobre…

Nós queremos parar de dividir quem é hetero, quem é homo, quem é branco, quem é preto… Não que a gente não reconheça a pluralidade (viva a diferença!); somos todos diferentes, olha que bacana! E é por isso que ninguém é melhor que ninguém.

Letícia Flohr (engenheira ambiental) e Ana Lodi (empresária), juntas desde 2014.

Ellen e Karin

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+ JOÃO E VICENTE

Com a gente aconteceu de forma tão natural que, na escola, quando perguntavam, meu irmão dizia “Ah, minha mãe? Ela namora a Kaká!”, daí eu o apertava e ele logo falava “O que é, João? É isso mesmo!”. Eu ficava com raiva, meio tenso, mas nunca sofri zoação de amigos, todo mundo encarou numa boa. Hoje em dia, quando me perguntam, eu falo que tenho duas mães. E as pessoas acham que a minha família vai ser uma coisa diferente e eu digo que não, que é a mesma coisa. A gente almoça, toma café, conversa, briga, faz tudo. É um preconceito da sociedade pensar que, porque alguém tem duas mães, então a família dele é diferente. Não tem diferença nenhuma. Deveria ser algo mais natural, porque para nós é totalmente natural.

Quando me separei do pai deles, fui à escola falar direto com as coordenadoras, elas acompanharam a separação. Foram pessoas incríveis que nos ajudaram muito. Quando eu fui lá, seis, sete anos depois, para dizer que estava casada, elas vibraram: “Quem é ele?”. Aí eu falei: “É exatamente isso, vim conversar com vocês porque não é ele, é ela, é a minha mulher, a Karin; mas pode ficar tranquila, não estou traumatizada, vou trazer ela aqui, ela é minha mulher, e não quero nenhum tratamento diferente com os meninos”.

Uma coisa que as pessoas costumam falar da gente é que somos uma “família exemplo”. Nós rimos, mas isso é muito em função da nossa postura; sem hipervalorizar o fato de sermos uma família “não padrão”, mas também sem tirar o valor disso. Temos a mesma estrutura familiar, no sentido da divisão de tarefas na casa, do espaço de colocação nos diálogos. Há espaço para cada um ser o que é. Temos nossos problemas, claro, como todas as outras famílias. Mas acho que faz diferença na hora que você se coloca: essa aqui é a Ellen, minha esposa, esses aqui são João e Vicente, filhos da Ellen, meus enteados – eu nem gosto dessa palavra, mas sei que esse é um lugar diferente, porque não é o lugar da mãe, nem do pai. É um terceiro lugar, que tem outra ação, de reforço. Essas funções são bem entendidas entre nós.

Há pouco tempo nós fomos ao aniversário de uma amiga que é gay e, na festa, havia várias mulheres. Era um jantarzinho íntimo, umas dez pessoas. Uma delas é casada com uma mulher há nove anos, a mulher dela também foi casada com homem, mas os filhos – uma menina de 14 anos e um menino de 11 – não sabem que elas são casadas. Moram na mesma casa, nesse mesmo esquema, vão para a casa do pai, voltam… Bem, elas pensam que não, mas com certeza eles sabem. Elas só não falam a respeito. Eu perguntei “Como assim, vocês não falam?” Ela respondeu: “Eu não sei. É complicado”. Eu cheguei a dizer “Sai daqui hoje e conversa com sua mulher. Porque daqui a pouco eles vão saber, e vão ficar revoltadíssimos.” Eu converso sobre isso com meus filhos com o maior orgulho, eles têm a maior sorte de ter duas mães.

Ellen Miranda (coordenadora de loja) e Karin Palhano (designer), juntas desde 2005.

Roberta e Juliana

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+ OLÍVIA E HELENA

Eu tive muito problema para me assumir gay, demorei bastante. Eu era muito preconceituosa. Achava que estava errada, no ambiente errado, mas não sabia o que era. Eu tentava me relacionar com homens, mas nunca estava feliz. Achava que o problema era das pessoas, das relações, que eu não conseguia me expressar direito. Aí, quando consegui me aceitar como homossexual, já com mais de 20 anos, as coisas começaram a fluir e eu entendi tudo.

Na família havia casos de pessoas mais velhas que eram gays e eu cresci ouvindo “Ah, coitado, ele deve sofrer muito”. Havia essa ideia de que o gay sofria muito por causa do preconceito, por ter que viver escondido etc. Hoje eu digo: sim, sofre muito quem não sai do armário porque, depois que a gente consegue viver isso com tranquilidade, acaba o sofrimento.

Sei que o bloqueio era meu, mesmo, pois meus pais nunca tiveram problema com isso e me acolheram superbem. O que ajudou foi eu ter me mudado de cidade, de estado, eu me tolhia muito enquanto estava no meu ambiente de origem. Quando saí daqui para estudar num lugar onde não conhecia ninguém, vivi aquela sensação de poder me transformar em quem eu quisesse ser. Depois de cinco anos, voltei para Niterói e comecei a fazer amizades com pessoas como eu. Inclusive minha mãe teve um papel primordial nessa história: foi ela que me apresentou à filha de uma amiga dela, que eu comecei a namorar e que, por sua vez, me apresentou a um monte de gente com quem fiz amizade e, assim, acabei conseguindo me inserir socialmente.

Já no meu caso, eu sempre soube que era gay. Vivi minha adolescência em Niterói sem nenhum senso de pertencimento a nenhum grupo. Foi tenebroso, eu vivia muito sozinha o tempo todo. Comecei a me envolver com música, teatro, gostava de ler e queria ampliar minha visão de mundo. Quando eu tinha 17, 18 anos, estava fazendo pré-vestibular e me mudei para o Rio com a minha irmã. Foi no curso de teatro que comecei a viver minha vida gay. Uma menina me falou assim: “Cara, eu fico com quem eu quero, eu não sou gay, não sou hetero, fico com quem estou a fim. Vambora, faz o que você quiser!”. Foi um ano intenso e de muita libertação.

Acho que nós nascemos para ser uma família. Depois que nos conhecemos, no início de 2013, a vida começou a fluir melhor. Tudo aconteceu muito rápido e sem nenhum tipo de complicação: nos estudos, no trabalho, na mudança de casa, no processo de ter filhos. As meninas, Olívia e Helena, nasceram exatamente um ano depois da nossa primeira consulta para fazer o tratamento de fertilização. Às vezes eu vejo alguns casais comentando sobre a mudança de vida depois que têm filhos, do tipo “ah, mas eu não posso mais fazer isso, não posso mais fazer aquilo…”. Eu não tenho saudade nenhuma de não poder fazer nada. A gente sabe que vai ter que se privar de um monte de coisas, mas a gente quis muito viver isso, foi o que planejamos para nossa vida.

Roberta Santiago (jornalista) e Juliana Guimarães (zootecnista), juntas desde 2013.

Weykman e Rogério

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+ ANNA CLÁUDIA, JULIANA, LUIZ FERNANDO E MARIA VITÓRIA

Sempre que conversávamos sobre nossos futuros filhos, não tínhamos qualquer dúvida: o caminho seria a adoção. Nós combinamos de atender às duas vontades: ele queria um menino, eu queria uma menina. Só que, quando começamos a participar dos grupos de adoção, percebemos o quanto essa questão do perfil é complicada. Em determinado momento do processo de habilitação, deve-se optar: quantas crianças, qual etnia, se aceita com doenças transmissíveis, com que idade etc. Nosso perfil era mais racional, a princípio eram duas crianças de até sete anos, mas depois começamos a questionar “Duas? Por que não três? Sete anos? Por que não oito ou nove? Que diferença faz?” E aí surgiu o momento de conhecê-los. Eram quatro crianças num abrigo em Marechal Hermes, estavam lá há seis meses. Nosso processo foi um pouco mais fácil por causa disso: são quatro irmãos com idades diferentes. Essas adoções são mais difíceis de acontecer.

Hoje o Cadastro Nacional de Adoção possui quase 30 mil pessoas aptas a adotar em todo o Brasil. Elas já passaram pelo processo de habilitação, é como uma carteirinha que diz “eu posso adotar”. E há seis mil crianças em abrigos aptas à adoção, ou seja, todo o processo de desvinculação, seja pela morte dos pais, seja pela perda do pátrio poder, já foi concluído. Seis mil crianças habilitadas, mais 40 mil em abrigos, em processo de habilitação. Só que os perfis não batem, porque mais ou menos 70% das pessoas aptas a adotar querem uma criança de até três anos, branca e preferencialmente do sexo feminino. E não é essa a realidade do nosso país. Nos abrigos, a maior parte das crianças é negra ou parda, um pouco mais velha, muitas vezes meninos e com algum tipo de doença (principalmente HIV) ou alguma deficiência física.

É notória a mudança do paradigma do perfil na adoção homoafetiva. Ainda não temos estatísticas formalizadas sobre o perfil das crianças adotadas por casais gays brasileiros, mas sabemos que é sempre um pouco mais amplo: são crianças mais velhas, negras, com algum problema de saúde… Talvez porque muitos de nós já passaram por sofrimentos assim, aprendemos a lidar com o preconceito na própria pele, então é muito mais fácil olharmos para uma criança “diferente” e enxergá-la normalmente. Há uma identificação muito maior com essa criança do que, talvez, se fosse um casal heterossexual, que não veria nela seu retrato. Isso acontece muito.

Em certas comarcas, um casal gay encontra inúmeras dificuldades para adotar, mesmo com toda a jurisprudência já bem clara quanto a isso. Não queremos nada além do que já está estabelecido como direito para a sociedade como um todo, só queremos os mesmos direitos. É fundamental mostrar para a sociedade que nossa família é comum, nossos filhos são comuns. O comum é muito mais lindo quando desaparece. O amor é comum, o afeto é comum. Essa é a maior prova que podemos contrapor a todo e qualquer preconceito.

Weykman Padinho (contador) e Rogério Koscheck (auditor fiscal), juntos desde 2007.

Bianca e Renata

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+ VALENTINA

Sobre o plano de ter filhos a gente fala desde que se conhece. Com um ano de namoro, já perguntávamos “como vai ser?”. A gente sonhava, mas não tinha ideia de como realizar esse sonho, como seria o tratamento, com qual médico… O primeiro pensamento que costuma vir é “pega um amigo gay”, mas não é tão simples assim. A ideia foi amadurecendo aos poucos, a gente começou a entender melhor, foi se informando. A perspectiva também aumentou, tanto financeira como de metas de vida. Quando a gente viu, já tinha todos os elementos de que precisava. Foi quando decidimos.

Eu era muito fechada, muito reservada em relação à nossa vida. A Valentina fez uma explosão dentro de mim. Quando a Bianca engravidou, tomei algumas providências rapidamente: chamei certas pessoas e disse “Preciso conversar com você. Tem algo muito bacana que acabou de acontecer, eu estou muito feliz e como você é uma pessoa importante para mim, eu preciso dividir isso”. E saí falando assim com várias pessoas. Precisei falar com chefe, amigos, gente que nunca soube nada da minha intimidade. Ou talvez até soubesse, mas respeitava por eu nunca abordar o assunto. Hoje elas comentam minha transformação e eu me sinto muito mais leve, muito mais feliz. Essa sou eu, antes eu era metade.

A chegada da Valentina exigiu essa transformação. Ela me permitiu compartilhar algo que antes eu não me permitia. Antes eu achava, talvez por preconceito, por medo da não aceitação, que estaria agredindo as pessoas, confrontando suas ideias, por isso preferia fazer segredo. Ela me deu coragem. Aquele receio, aquele medo, simplesmente se diluíram e constatei que eu mesma havia construído uma barreira. Ficou comprovado que era algo muito mais construído por mim do que de fora para dentro, pois a aceitação das pessoas foi unânime.

Com isso, nossa vida mudou inteiramente. É como se a gente tivesse saído do armário. Não que antes não fôssemos assumidas, mas não fazíamos a menor questão de mostrar para ninguém. Depois da Valentina, começamos a participar de grupos, de programas, a dar entrevistas. A gente quer e precisa mostrar que sim, aqui existe uma família, que isso é possível, que as pessoas podem ir atrás dos seus sonhos.

A Valentina está na creche desde os cinco meses. Assim que a gente entrou, a Bianca foi convidada para fazer parte de um grupo de mães no WhatsApp. Quando ela foi adicionada, disse “Gente, está aqui o número da outra mãe da Valentina, a Renata”. Um tempo depois, uma das mães falou “Ah, eu nunca comentei nada, mas queria dizer que minha filha também tem duas mães, eu e fulana”. A menina era mais velha que a Valentina, já estava na creche há muito tempo. Olha que coisa bacana! E necessária: toda criança precisa dessa autoestima, desse reconhecimento. Isso me tocou demais, justamente porque nós vivemos essa ruptura e estamos incentivando outras pessoas. Nós abrimos uma porta.

Bianca Repsold (publicitária) e Renata Ribeiro (jornalista), juntas desde 2001.

Robson e Steve

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A gente sempre quis casar, mas vinha adiando, adiando, até que o Robson enfartou. Nós morávamos no Piauí. Aí pensei “Se ele está na UTI, esse casamento vai ter que ser agora, porque na hora que ele entrar para a cirurgia, quem garante que ele vá sair?” Então fomos eu, dois grandes amigos nossos, ambos heterossexuais, a um cartório de Teresina. Eu disse que queria uma união homoafetiva, mas tive que explicar várias vezes porque uma das donas não conseguia entender… Falou que nunca haviam feito aquilo antes. Enfim, acabamos casando na UTI mesmo, que é um lugar onde só entra uma pessoa por vez, mas exigi que o amor subvertesse a regra: “Vai entrar todo mundo!”. Daí veio o padrinho, uma amiga, a tabeliã, vieram as testemunhas, as flores… O hospital inteiro sabia, foi uma festa! As fotos são muito engraçadas, a única pessoa que não está de máscara é o Robson.

Eu me assumi com 15 anos para uma família extremamente conservadora, foi bem complicado. Eles sempre tiveram dificuldades com isso. Saí de casa com 18 anos. Num determinado momento a coisa aqui no Brasil ficou muito feia e, em 1972, me exilei, até por causa de um episódio em que fui preso e espancado. Sim, foi por causa da minha orientação sexual: estava beijando meu namorado em público. Sempre me lembro de um mote muito caro às feministas dos anos 70: “O político é pessoal, o pessoal é político”.

Quando minha irmã se deu conta de que nosso namoro era sério, disse que era inaceitável e passamos dez anos sem nos falar. Mas, tantas voltas o mundo dá, hoje somos novamente grandes amigos, como fomos durante a infância. Ela teve uma filha cega e aprendeu na pele o que é preconceito; houve um pedido de desculpas muito emocionante. Enquanto isso, eu tive a família do Robson, que sempre me acolheu, me aceitou, sempre foi muito carinhosa comigo – tudo o que a minha família não me deu.

Muita gente traz resquícios de ódio contra si mesmo, de um autodesprezo por não corresponder a certas expectativas sociais, familiares, e se sente miserável por isso. Sente-se infeliz e pensa coisas do tipo “Será que eu seria mais feliz se gostasse de mulher? Se tivesse uma renca de filhos?”. Isso é uma falácia, uma besteira, mas estamos formatados nesse modelo de identidade. Você é educado para ser uma coisa num momento em que está descobrindo que é outra. Não é fácil aceitar aquilo que realmente somos. Criamos uma autodecepção em relação a isso que a gente tem que superar, tem que lutar e seguir em frente. Se aceitar, mesmo, porque a autoaceitação é fundamental para a própria aceitação social.

Uma coisa importante também é aquela máxima Oswaldiana, “A alegria é a prova dos nove”. Eu cheguei num ponto em que prefiro rir a gozar. Quando eu digo rir, é aquela gargalhada que dói o estômago, que você cai no chão, que rolam lágrimas… A gente ainda consegue fazer isso pelo menos uma vez por dia. Rimos muito de nós mesmos, dos outros, do mundo. Amor é humor.

Robson Cruz (antropólogo e psicanalista) e Steve Berg (tradutor e cineasta), juntos desde 2002.

Luiz Paulo e Diogo

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Nunca nos separamos, mas também não fazemos da longevidade do relacionamento uma obrigação. O que sempre foi muito claro para nós é a vontade de estarmos juntos. Sabemos que não existe parceiro perfeito. Nós não nascemos um para o outro, a gente se escolheu.

Com o tempo, você introjeta o fato de que a sociedade te vê de forma negativa; em alguns momentos talvez nem veja, mas você tem essa sensação. A mentalidade está começando a mudar, mas não adianta querer chegar numa família tradicional, cristã, e empurrar quebras de paradigmas goela abaixo. É preciso tentar mudar o modo como eles enxergam a homossexualidade. Mostrar que a orientação sexual não define a pessoa em si. Escutamos coisas do tipo “Eu gosto do Luiz e do Diogo porque eles não são tão afeminados”. Aí você espera um pouco e fala “Olha, tem gay que é afeminado, e não há problema nenhum nisso”. Poder desconstruir verdades sociais é uma oportunidade que você só tem porque conquistou aquele espaço. É como se fosse uma microrrevolução, um processo revolucionário quotidiano.

Tem aquela listinha, o “check list gay”: vai gostar de cabelo, de moda, de falar mal dos outros, fazer fofoca. Eu sou exatamente o oposto! Eu não gosto de moda nem de cabelo, não falo mal das pessoas, não sei nada sobre esse mundo dos famosos, não gosto de ver novela. E isso se relaciona com várias outras coisas da nossa sociedade. As pessoas esperam de um gay que ele consuma certas coisas, que se vista de certa forma, que aja de certa maneira, mas não é a nossa sexualidade que define o nosso gosto e o nosso comportamento.

A homofobia está se tornando velada, assim como aconteceu com o racismo. Isso é perigoso, porque a gente passou de uma etapa muito mais hard e está entrando numa mais soft, em que é mais difícil combater o preconceito. Algo parecido com o que acontece com as mulheres em relação ao machismo.

Recentemente um amigo nosso, de 24 anos, se matou. Desde que se assumiu, muito novo, sofreu muito preconceito, apanhou, foi humilhado. O pai dele era muito homofóbico. Depois, entrou num período de “aceitação”. Só que, muitas vezes, essa “aceitação”, essa tolerância, é ódio administrado, não tem nada de aceitação. Talvez o histórico de rejeição tenha influenciado no suicídio. Na época, ele foi à Vara da Infância e da Juventude reclamar do pai e a assistente social não sabia nem o que era homofobia. Muita coisa mudou nos últimos dez anos.

Há uma onda de ódio crescente que me preocupa muito. Nas redes sociais, as pessoas decidem que são juízes… Dói muito ligar a TV e ouvir um candidato à presidência falando “Ninguém reproduz pelo aparelho excretor”. Eu cancelei a assinatura do jornal porque esse tipo de coisa me incomodava, fazia mal, eu ficava deprimido. É muito chocante escutar alguém falando o que é uma família, e depois eu chegar em casa e olhar para mim e para o Diogo e pensar: como alguém pode dizer que isso não é uma família? Somos tão felizes juntos.

Luiz Paulo Labrego (professor) e Diogo Matos (economista), juntos desde 2002.

Marah e Samantha

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Eu enfrentei algumas dificuldades no ambiente familiar. Aconteceu há bastante tempo, eu tinha 17 anos, hoje tenho 36. Imagina isso há décadas, a discussão ainda era muito embrionária. Minha mãe achou uma cartinha da namorada que era uma suposta amiga e pirou, enlouqueceu. Ainda havia aquela relação de dependência, eu morava com meus pais. Ela ficou uns três meses no luto, desesperada. Mas tive o apoio da minha família, uma tia que era lésbica também ajudou muito. Consegui assim, no diálogo, na conversa, porque minha mãe era muito liberal para lidar com outras pessoas, com o vizinho que era gay, a irmã dela, com eles não havia nenhum problema, mas quando ela descobriu que a própria filha era lésbica, ficou desesperada.

Já eu nunca tive dificuldade alguma porque, na fase da minha vida em que me assumi gay, já estava muito bem resolvida, não devia satisfação a ninguém, já era livre. Eu tinha 29 anos e estava tão feliz com aquilo que pouco me importava com o que as pessoas iriam falar. Minha felicidade estava acima de qualquer coisa. Contei para a família inteira e todo mundo achou aquilo legal, divertido, louco. Nunca precisei esconder, apenas dei a notícia para cada pessoa em seu momento, porque entendo que há um desafio a vencer. E entendo a importância de ocupar nosso lugar, nosso espaço nesta sociedade que é ainda tão preconceituosa. É uma luta, mas é uma vitória também. Só de eu poder andar com ela de mãos dadas na rua já é uma vitória, mesmo sabendo que de repente pode aparecer alguém para nos insultar.

Parte desses conflitos existe porque essas famílias, como a mãe da Samantha e outras mães de amigas que acompanhei, não tiveram uma educação sexual. Os pais deles não disseram “Olha, você pode casar com um homem ou, se quiser, também pode casar com uma mulher, ou…”. Não, eles não foram preparados para isso. Em uma cultura muito católica, boa parte das famílias foi educada num regime que diz que a mulher é para servir o homem. Muitas pessoas sofrem com suas mães e pais por questão de aceitação, mas a culpa não é deles. Eles apenas não foram orientados. Na cabeça deles, o que está certo é o que foi dito na igreja, na escola, dentro de casa. Eu penso que esse tipo de sofrimento vai se diluir com o tempo. Já tem uma nova geração de pais que orientam seus filhos de forma diferente, já existem novas famílias surgindo, está cada vez mais claro este resgate em ser e assumir aquilo que você é. Este sofrimento tem data para acabar, é um processo que está acelerado.

Tem coisas que passam como sendo utopia. Utopia não é uma forma de se iludir, mas sim “o que há a se conquistar”. Há muitos anos, quando a gente falava de a família entender, compreender, as pessoas diziam “Mas isso é utopia, você está sonhando com algo que não vai existir”. E olha aí a utopia virando realidade. O utópico é o que eu sonho e posso tornar realidade. É o que nos põe em movimento.

Marah Silva (estilista) e Samanta Guedes (assistente social), juntas desde 2010.

Cláudia e Virgínia

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+ PEDRO AUGUSTO

Desde o início da nossa relação, a Cláudia deixou claro que queria muito ter um filho. E, quando chegou a hora de levar o assunto mais a sério, começamos a planejar: ter uma casa mais adequada, com espaço para a criança brincar, fazer uma poupança, registrar o pacto de união estável (na época ainda não era legalmente reconhecido como núcleo familiar, mas mesmo assim fizemos questão de fazer).

Quando decidimos entrar com o processo de habilitação para adoção, foi muito difícil, simplesmente não andava; demorou um ano para conseguirmos dar entrada, mesmo com ajuda de uma advogada. Quando finalmente começou a andar, foi muito burocrático. Tínhamos que apresentar documentos sem fim, de comprovantes de emprego e união duradoura a atestados de saúde física e mental. Mas, como já tínhamos tudo planejado, conseguimos levantar a papelada sem dificuldades. Para os padrões brasileiros, até que o processo se desenrolou rápido: ao final de dois anos e meio, o Pedro Augusto chegou.

Nós o encontramos com 20 dias de vida, dormindo no berçário da vara de infância. Ele tinha um sinal bem no meio da testa (hoje já desapareceu), brincamos que ele veio com o sinal para que pudéssemos encontrá-lo. E essa acabou virando a sua história de origem; quando ele nos perguntou pela primeira vez de que barriga ele nasceu, contamos que, como não podíamos ter filhos da nossa própria barriga, ele achou uma forma de vir e nos avisar: arranjou uma barriga emprestada e veio com um sinal para que pudéssemos reconhecê-lo. Ele veio logo para casa, mas ainda precisamos de mais dois anos para concluir o processo de adoção e para conseguir a certidão de nascimento com nossos nomes. Só então relaxamos, porque a situação da guarda provisória é muito angustiante. Imagina essa criança que você já ama, para quem você e sua família são a única referência, mas ainda há o risco de alguém chegar e tirá-la de você… Só quando saiu a guarda definitiva foi que ficamos em paz.

Nunca tivemos dificuldade de assumir nossa relação publicamente. Em primeiro lugar porque nos conhecemos numa idade mais madura, em que se esconder já não fazia mais sentido. Depois porque, quando você tem filho, isso se torna ainda mais necessário. Você tem que ter segurança e tem que passar essa segurança para ele. Talvez algum dia ele também venha a sofrer algum preconceito. Como você vai poder ensinar valores para o seu filho se você vive uma vida falsa? Então, isso era uma condição sine qua non para nós.

No ambiente profissional, acho que tivemos sorte de trabalhar em multinacionais, que estão muito à frente das empresas brasileiras em relação a proteção e benefícios no campo da diversidade. A empresa da Cláudia foi pioneira na implantação desse tipo de programa no Brasil. Quando o Pedro Augusto chegou, já no dia seguinte conseguimos a licença maternidade e ele foi cadastrado para ter os benefícios antes mesmo de sair a guarda definitiva.

Cláudia Nunes (analista de sistemas) e Virgínia Almeida (psicóloga), juntas desde 2003.

Luciane e Elis

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Para mim não foi muito complicado porque eu transitava entre relações com homens e com mulheres. O mais engraçado é que a primeira situação de preconceito que tive de enfrentar não foi em relação ao fato de sair com mulheres, mas de ter homens também. As meninas gays falavam assim: “Por que você está saindo com homens, se já sai com mulheres?”.

Eu nunca gostei de misturar o espaço profissional com o que acontecia na minha vida pessoal. Acho que são coisas que não precisam se misturar, embora ambas façam parte da sua vida. Se alguém do trabalho perguntar se você é gay, por que colocar isso debaixo do tapete? Não é um processo simples para ninguém, porque a gente vive numa sociedade conservadora. Há pequenos nichos onde você pode viver sua sexualidade com tranquilidade, mas isso não é a regra social. Mesmo sabendo que não é fácil, acho que é preciso dar visibilidade, senão vai ser sempre uma coisa escondida e essa condição de não visibilidade é que gera mais preconceito. Imagino que possa ser mais simples para essa geração atual de adolescentes, que coloca na internet fotos com namorados e namoradas já no início da descoberta de sua sexualidade.

Eu vim a ter contato mais profundo com o Brasil há pouco tempo, num trabalho com trabalhadoras rurais integrantes de um movimento feminista no Nordeste. Nós as ensinamos a filmar para que elas mesmas pudessem mostrar seu movimento e contar sua história. Aí tive chance de descobrir a intensidade com que as coisas estão rolando no país. Conheci mulheres que vivem em lugares pequenininhos e que têm uma militância feminista, estão discutindo gênero, discutindo sexualidade. Trabalhadoras rurais que são gays, estão conectadas à internet, usam WhatsApp para se mobilizarem, usam as redes sociais para fazerem manifestações públicas… Isso é incrível, porque quando se fica neste circuito mais urbano, você pensa que tudo está acontecendo só nas cidades, especialmente nas cidades grandes, e na verdade nós temos um país em que as coisas estão rolando nos lugares mais distantes… Isso também tem pouca visibilidade.

Agora elas vão fazer uma das maiores marchas do país, que é a Marcha das Margaridas. Milhares de mulheres em Brasília, vindas do país inteiro. É um movimento feminista que abarca vários temas: violência contra as mulheres, educação política, as questões de gênero, e aí entra a questão da homossexualidade também. Quando uma mulher sai da sua região para ir para o encontro do MMTR, que é o Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Nordeste, na comunidade dela os vizinhos costumam perguntar “Mas como assim, você vai deixar seu marido, seus filhos, para ir a um encontro feminista? Vai fazer o quê lá? Vai deixar de trabalhar e ir se divertir com outras mulheres?” Aquela visão clássica e preconceituosa que se tem do movimento feminista.

Luciane Quoos Conte (professora) e Elis Galvão (socióloga), juntas desde 2007.