Alfredo e Pedro Paulo

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Fui criado numa cidade do interior de Minas Gerais, carregada de preconceito, mas desde os 12 anos eu já sabia o que queria e a todo momento tentei buscar minha identidade sexual. Com 15 anos fui para a capital estudar, foi quando minha família soube. Tenho uma tia casada com outra mulher há 30 anos; assim, quando resolvi me assumir, foi muito menos doloroso para mim e para os outros, porque ela é uma pessoa que tem moral, tem princípios éticos e tudo o que as pessoas naquela época imaginavam que os gays não tinham. Ela já tinha provado que poderia ter um casamento firme, duradouro e ao mesmo tempo ser uma excelente profissional. De certa forma, elas são o modelo de família para a família inteira. Não só o modelo para os gays e lésbicas (que são muitos), mas também para os heterossexuais. É na casa delas que acontece o Natal todos os anos, isso é muito bacana.

Mas, apesar disso, de elas serem referência clara para todos, a união nunca foi verbalizada, elas nunca haviam se assumido como casal. A primeira vez que fizeram isso foi no nosso casamento. Quando perguntaram aos presentes se alguém tinha algo a dizer, uma delas se levantou e falou: “O que vocês estão fazendo é algo que a gente nunca conseguiu fazer em 30 anos. Por isso esse é um dia muito especial para nós”. Não foi surpresa para ninguém, mas foi a primeira vez que se falou sobre isso.

Em relação à condição homossexual, acho que existe, sim, uma opção: você ser feliz com ela. Isso é uma opção. E tem gente que opta por não ser feliz. Se existe uma opção nessa história toda, é a de se assumir. Mas, ontogeneticamente falando, ou seja, se eu posso optar ou não por ter o desejo que eu tenho ou ser o que sou, não acredito. E não acho que isso seja uma questão genética, sinceramente; não sei se podemos botar na conta da genética aquilo que não é opção. Ninguém conscientemente opta por viver a homofobia, por não poder expressar afeto em público; ninguém optaria por ter que esconder a pessoa que ama do restante da sociedade. E isso nós fazemos todos os dias. Por mais que sejamos abertos, que não tenhamos nenhum tipo de questão com isso, todos os dias a gente precisa, de certa forma, camuflar aquilo que sente. Então, não, isso não pode ser opção. Só é desta forma porque a sociedade entende que isso é um problema.

Agora, o que faz com que a gente ainda assim enfrente tudo, ou seja, com toda a homofobia que se vive no mundo, com toda a falta de respeito, eu acho que é muito desejo. É muito desejo e é muita saúde psíquica, porque você enfrenta toda uma maré política, histórica e social em nome daquilo que você acredita, sente e quer. A opção é isso, é você viver uma vida sem questões, mesmo quando a sociedade toda te coloca isso como uma questão. Se eu conseguiria não desejar, aí é outra história. Mas, como não tenho a menor pretensão de deixar de desejar da forma como desejo, isso para mim não é um problema.

Alfredo Assunção (administrador, doutorando em psicologia) e Pedro Paulo Bicalho (psicólogo, professor universitário), juntos desde 2011.

Marc e Daniel

7_Marcelo e Daniel

 

 

+ LOLA

Uma coisa que eu vejo é o preconceito do próprio gay, que quando se descobre gay, acha que não pode ter uma vida normal. Que tem que viver no gueto, se esconder. Acho isso muito venenoso. O legal deste projeto é fazer vir à tona a normalidade da nossa vida em família.

A gente já conviveu com vários gays que, quando souberam que temos uma filha de 12 anos, ficaram assustados. “Mas você tem uma filha, como assim?”. Parece quase de outro mundo. Os preconceitos da sociedade estão enraizados também na cultura dos gays, que acham que têm que viver isolados, nunca ter um namoro sério, jamais um casamento, e muito menos um filho. Nesse meio, os estereótipos se reforçam. Principalmente o gay masculino não se imagina tendo filho. Uma lésbica pode pensar nisso, ela pode gerar um filho. Um homem gay, por não poder gerar, nem pensa nessa possibilidade. Perdi amigos gays porque fiz uma adoção. Tive amigos que falaram ”Você é louco!” e se afastaram mesmo de mim.

Eu nunca tive muito o hábito da vida noturna, de fazer programa tipicamente gay. Eu nem gosto de programa gay, eu gosto de programa bom. Eu gosto de gente, não de um só gênero. Eu confronto até hoje alguns amigos sobre isso. Às vezes, quando convido “vamos a uma festa?”, a primeira pergunta que fazem é se a festa é gay. O que importa se é uma festa gay? É uma festa de gente, gente feliz. Parece até um medo do tipo “eu posso sofrer alguma retaliação se estiver num ambiente onde não sou aceito”. Mas, na verdade, se a gente não se coloca com respeito e dignidade em todos os ambientes, não seremos aceitos em lugar nenhum, sendo gay, sendo hetero ou não sendo nada. Eu defendo a dignidade, defendo que tenho o direito de ser feliz como qualquer outra pessoa, independente das minhas escolhas.

Tem quem fale que eu sou quase um gay homofóbico. Eu respondo “Homofóbicos são vocês, com vocês mesmos!”. Sabe aquele tipo que se faz passar por bofe? E quando você pergunta por que ele age assim, ele diz “Ah, porque assim você pega mais caras”. Hããã?! Aí você percebe uma fala que ainda é enraizada no preconceito, enraizada no machismo, no paternalismo, do pai, do avô, e também da mãe e da avó passivas, submissas, da mulher submissa. Eu fico apavorado quando vejo esse tipo de coisa. Acho muito doido, não entendo. Mas também evito fazer julgamentos sobre as pessoas que têm esse preconceito ainda tão potente na vida delas, mesmo sendo gays. É difícil, a gente não sabe a história delas, o quanto precisaram dessa posição de defesa, de ter que ter armaduras e tudo o mais.

Já eu não tive esses problemas, desde muito novo me aceitei, foi natural. Por isso eu fico muito assombrado, até pela potência negativa que esse tipo de coisa tem, de você não se aceitar, de não se assumir, seja no que for – não importa a escolha que você faça.

Marc Kraus (artista visual) e Daniel Wagner (maquiador), juntos desde 2010.

Xan e Vitor

6_Alexandre e Vitor

 

 

Por mais que isso possa ter sido um problema para a minha geração, me assumir gay nunca foi uma questão para mim. Tive pais muito amorosos, muito próximos. Estudei Comunicação, eu era um “bicho grilo”, então podia estar com garotos, com garotas… Eu apresentava todos para a família, sem o menor problema, e eles os recebiam com carinho e acolhimento. Sempre foi uma coisa natural.

Eu vivi isso na década de 80, no interior de São Paulo, numa cidadezinha muito pequena. Certa vez, muitos anos depois de ter saído de lá, voltamos eu e Alexandre para visitar a família e fomos à casa da Dona Maria, mãe da menina que cuidava de mim. Ela perguntou: “Esse é o seu companheiro?”. Ela usou essa expressão. Nós ficamos surpresos, era uma senhora de quase setenta anos. Que sabedoria! A gente não pode julgar nem subestimar ninguém. Às vezes, mesmo num ambiente cultural ultraconservador, há pessoas com outra visão de mundo.

Muitas vezes o preconceito está no próprio gay, na forma como ele se vê, como se coloca. Se você age com naturalidade, dependendo da forma como você fala de uma pessoa que ama, se você se coloca de forma amorosa, não tem como não ser bom. Nós temos uma participação direta na maneira como os outros nos acolhem. E tem que ser verdadeiro. Se não assumir seu parceiro dentro de você, como irá apresentá-lo para outra pessoa? É simples assim. Qualquer pessoa que goste de você terá capacidade para compreender isso. É como se dissesse “Ah, tá, então é essa pessoa que te faz feliz? Então ela é bem-vinda”.

De minha parte, eu sempre tive muito clara a minha condição homossexual, politicamente, socialmente, no trabalho… Antes de qualquer coisa tem que haver respeito, respeito pelo ser humano, independente de suas escolhas relacionadas a sexo, política e religião. E se você não estiver tranquilo com o seu tesão, sua vida, nada vale. Precisa estar inteiro: política, sexualidade, amor, trabalho, tudo junto. Eu sempre vivi politicamente. Digo isso porque acho que a gente tem que exercer nossa cidadania afirmando nossa sexualidade, as nossas escolhas amorosas. No trabalho, a gente tem que falar da nossa condição, sim. Na rua, passeando com seu cachorro, você tem que falar da sua condição, sim. Não é levantar bandeira, “Eu sou gay!”, mas “Oi, prazer, esse aqui é meu companheiro Vitor”, como qualquer hetero faria. Eu ser gay está em segundo plano, não importa. Importa que estou apresentando a pessoa que eu amo para mim mesmo, antes de apresentar para qualquer outro. Essa é uma conquista de todos nós. E precisa ser exercitada diariamente, independente de idade ou geração. Conquistei essa consciência aos 13 anos, quando me descobri gay, mas eu nunca fiz disso um problema. Se não for natural, vira um fantasma na sua vida, você não consegue viver inteiro.

Alexandre Farias (diretor de arte) e Vitor Zenezi (jornalista), juntos desde 2004.

Joana e Ique

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Eu já nasci uma menina, sempre muito feminina e minha mãe sempre viu porque era óbvio. Além disso, criança fala o que quer, não tem noção de que é “errado” um menino querer ser uma menina, até porque não é errado mesmo. Minha mãe me apoiava, mas ao mesmo tempo ela tinha medo. Então ela apoiava e, às vezes, reprimia também. Mas se hoje eu tenho uma personalidade forte é em parte por conta dela, do tipo de criação que eu tive.

No dia em que coloquei um vestido pela primeira vez (eu tinha uns 21 ou 22 anos), ela falou para eu não fazer isso. “Eu vou colocar, sim”, disse. Era um réveillon. Em algumas ocasiões antes disso, ela já tinha me perguntado, supercordialmente, “Você quer colocar o vestido?”. Aí, quando eu quis mesmo, ela disse que eu não ia sair daquele jeito. “Então eu não vou, porque sem o vestido eu não vou.” E eu fui!

Algumas pessoas foram muito importantes para mim nessa época, me ajudaram a perceber que isso não era nada ruim, e que é necessário “ser o que você é”. E eu sempre acreditei nisso, que ser trans é uma coisa incrível. Também tomei contato com a teoria Queer, com alguns movimentos ativistas gays. Eu estava numa fase de transição e essa fase foi muito marcante porque eu não era nem “ele” nem “ela”. Depois passou, transitei e cheguei no “ela”, que era o que eu realmente sentia. Antes me chamavam apenas de Jô. Ainda chamam, eu adoro, mas agora meu nome é Joana. Ainda não fiz a modificação nos papéis; vou fazer, mas sei que é caro e demora. Eu não pretendo fazer a cirurgia de mudança de sexo porque é algo muito agressivo e não faz diferença no meu ser mulher, com esse dinheiro eu prefiro viajar bastante! Isso me faria sentir mais livre que uma operação.

Sobre preconceito, com certeza eu senti na pele, como todo mundo que foge da heteronormatividade. Mas, ao contrário do que possam pensar, as coisas mudaram muito – para melhor – depois que eu transitei de gênero, pelo simples fato de que agora eu sou lida socialmente como uma mulher, e bonita: isso não incomoda, isso agrada às pessoas. Trabalho com arte, então no meu meio social e de trabalho sinto o carinho e a admiração dos outros. Mas no prédio onde moro desde criança e hoje vivo com meu marido, onde as pessoas sabem da minha história, a coisa muda de figura: já sofri perseguição da antiga síndica e situações chatas envolvendo porteiros. Mas não devemos abaixar a cabeça e sim tentar fazer com que essas mentes pequenas entendam algo que na verdade é tão simples…

A família do Ique não lidava bem com o fato dele sair com homens, mas lidam bem com a nossa união. Porque, de algum modo, nós nos enquadramos numa visão heteronormativa; socialmente falando, somos um casal heterossexual e, de novo, isso não incomoda. Pelo contrário: nossas famílias se dão bem e ficam muito felizes com a nossa união.

Joana Couto (artista visual) e Ique Hillesheim (estudante de Serviço Social e Ballet), juntos desde 2012.

Laura e Marta

3_Laura e Marta

 

 

+ ROSA, JOSÉ E CLARISSA

Desde que começamos a falar sobre essas questões publicamente – se assumir gay, constituir família –, a fazer peças de teatro sobre o tema, participar de programas de TV etc., muitas pessoas do Brasil todo começaram a nos escrever para compartilhar seus problemas; outros, para elogiar nossa coragem, porque apesar de se acharem assumidos, não conseguem se abrir no ambiente de trabalho, por exemplo. Como a gente costuma compartilhar nossa felicidade, as pessoas pensam que sempre foi fácil, mas não foi. E foram justamente as dificuldades que nos levaram ao ativismo.

Começa por essa dificuldade de se assumir para a família. Nós vivemos os primeiros cinco anos do relacionamento sem que eu pudesse falar sobre o assunto em casa. Imperava a “lei do silêncio”, o que é um horror, porque você vive como se estivesse fazendo algo errado. Até que um dia, numa conversa sobre cotas raciais, minha mãe falou que eu não sabia o que era sentir na pele o preconceito e a discriminação. Eu não me contive e falei: “Estou com a mulher que amo há anos e não posso falar sobre isso!”. No dia seguinte, ela me acordou para dizer que não havia nada de errado comigo, que reconhecia que o preconceito era dela, que mesmo ela não querendo, estava sentindo aquilo e que ia lutar para superar. Essa promessa fez muita diferença porque a partir daí nós começamos a nos apresentar como casal na família. No início, a aceitação era só na família nuclear, na família ampliada ainda era aquela coisa que não se discute, aquele Natal sozinho… A gente teve a “salvação” pelos filhos, mesmo.

Primeiro buscamos a adoção, pois queríamos quebrar o paradigma do vínculo biológico, embora também desejássemos gerar. Desde o início, planejamos ter três crianças. O processo de habilitação caminhou muito lentamente. Enquanto isso, conhecemos pessoas que já haviam conseguido vencer essa batalha. Foi muito importante ver uma família funcionando com duas mães, com os filhos já registrados em nome das duas, as crianças felizes, isso nos deu muita segurança. No decorrer dessa história, começamos a fazer a inseminação artificial e a Marta engravidou da Rosa. Contamos para a família toda e a receptividade foi fantástica. A Rosa chegou harmonizando tudo. Passados dois anos, chegaram José e Clarissa, ao mesmo tempo: quando eu estava grávida de oito meses do José, recebemos o telefonema da Vara da Infância com a indicação da Clarissa, que na época tinha quase três anos. O processo de aproximação e adaptação durou quatro meses antes dela vir morar conosco.

Os primeiros meses foram difíceis, mas aos poucos as coisas foram se ajustando e eles formaram um trio muito amigo, que vive numa alegria constante. E a gente fez disso uma causa. Há muita gente passando pelas dificuldades que passamos, há uma luta política pelo reconhecimento das nossas famílias, dos registros das crianças, dos nossos casamentos, dos nossos direitos. A gente precisa se engajar.

Laura Castro (atriz) e Marta Nobrega (atriz), juntas desde 2000.

Kika e Carol

2_Kika e Carol

 

 

+ TEREZA

Quando nos conhecemos, costumávamos dizer uma para a outra “Nossa, que loucura vai ser a gente como casal!”. Era realmente um sentimento de surpresa. Nós temos o mesmo signo, gostamos das mesmas coisas… Depois de alguns anos juntas, tivemos o desejo de ampliar, do casal virar família. E de novo veio essa sensação, com a mesma intensidade: “Nossa, que família a gente vai ser!”. As pessoas costumam falar “Como vocês são corajosas!”, mas a gente não se sente assim, apenas vivemos com naturalidade. Eu não penso “Eu tenho uma família homoafetiva”. Essa família só existe porque é natural.

É impressionante como um filho legitima algumas coisas. Não há resquícios de preconceito que permaneçam. A criança vem e é só amor, a família toda se rende. Nós sentimos que agora há um respeito maior.

Mas ainda há muita desinformação na sociedade, as pessoas ficam um pouco chocadas. É mais uma surpresa do tipo “Espera aí, mas como assim?”. Algumas perguntam “Mas como foi? Foi inseminação? Vocês adotaram?”. Fica um ponto de interrogação na cara das pessoas. Eu acho muito legal, porque pelo menos elas já verbalizam, falar sobre a questão já é um avanço.

Nós mesmas já nos pegamos na dúvida sobre como lidar com a situação. Certa vez fomos a uma loja de bebês, a Carol estava grávida e a mulher perguntou sobre o pai. Na hora deu uma preguiça de contar tudo, de entrar no assunto, aí eu rapidamente falei “É, é, o pai é grande, sim”. Depois nós refletimos e concluímos que não podemos entrar nessa, não podemos ter essa preguiça. Porque a Tereza está aí, ela já sabe de tudo e tem que ouvir a verdade para que isso fique num lugar tranquilo.
Quanto mais naturalmente a gente trata a questão, mais as pessoas se abrem. Porque o preconceito parte da nossa dificuldade. Ninguém é culpado ou faz por maldade, eles simplesmente desconhecem. Quando começam a conhecer, deixam de lado essa coisa do “diferente”, porque é absolutamente igual: os sentimentos, a maneira como você vai cuidar, as dificuldades…

Quando decidimos que teríamos filhos, começamos a pesquisar, a procurar médico, a pensar se seria com um amigo ou com doador. Conversando com uma amiga que tinha tido filho com um conhecido (que ela havia liberado da responsabilidade da criação), ouvimos dela a seguinte frase: “Na verdade eu sublinhei uma ausência”. A criança sabe que ela tem um pai, que ele existe, só que não liga para ela. E isso foi muito determinante para nós. Optamos pelo doador anônimo porque planejamos ter uma família com duas mães. Sabíamos que, na prática, essa terceira pessoa não faria parte da criação da Tereza.

O mais chocante é o preconceito de algumas religiões, como elas podam os principais valores religiosos, que são o amor, a compaixão, o respeito, e jogam com o ódio, a intolerância. Isso demonstra o quanto elas estão afastadas do ensinamento primeiro da espiritualidade, que é o amor universal, e como preferem este papel de aprisionar, de adestrar as pessoas.

Kika Motta (artista) e Carol Machado (atriz), juntas desde 2007.

Vlad e Roberto

 

 

Hoje em dia é menos difícil para as pessoas assumirem sua homossexualidade. Antes havia uma questão subjetiva muito complicada, independentemente de como a sociedade, os amigos e a família reagiriam. Pelo menos para mim foi assim, eu imaginava que as pessoas iam reagir muito mal. Hoje percebo que os gays têm mais facilidade de lidar com isso, com esse tipo de autocobrança, de cumprir um papel, de casar, ter filhos, todo esse rito social. Estamos descobrindo que há vários outros papéis. Antes não víamos isso, mesmo quando as condições reais não eram tão opressoras quanto imaginávamos. Não estou dizendo que hoje não existam, objetivamente, condições opressoras, é claro que existem, mas agora as pessoas são mais capazes de enxergar quando não são. Naquela época era mais difícil porque já imaginávamos o pior, criávamos mil fantasmas na cabeça: “o que as pessoas vão falar? Como é que sua família vai reagir?”.

O drama estava na minha cabeça, era interno. Não conseguia imaginar qual papel iria cumprir na família, frente aos amigos, sendo gay. Porque só tinha como referência aqueles papéis pré-fabricados, estereotipados, dos programas de humor na TV, tipo Os Trapalhões. Era tudo tratado como piada, o personagem gay era mostrado de forma bizarra, como escracho da sociedade. O que eu poderia pensar que viria a ser? Não sabia qual seria o meu papel, como as pessoas iam me encarar. Conseguir imaginar como as pessoas te veem é muito importante porque nós somos animais sociais, a gente precisa disso, e eu estava tentando me enquadrar socialmente. Hoje existem muito mais referências na mídia, com diversos estilos de vida que uma pessoa gay, como qualquer outra pessoa, pode seguir.

Lembro que certa vez (isso foi em meados dos anos 80) minha mãe estava comentando com meu pai sobre aids. Ninguém sabia nada sobre o que era aquilo, e ela falou de “câncer gay”. As informações eram muito truncadas. Eu estava começando minha vida sexual e fiquei apavorado: “o que é isso? Um câncer que só dá em gay? Será que eu vou pegar câncer?”.

A comunidade gay poderia ter aprendido, por seu próprio histórico, a ser mais tolerante com a diversidade. Não querer ficar enquadrando todo mundo, tipo “Ah, esse cara é um gay enrustido”, “esse é um bi enrustido”, “esse é um hetero enrustido”. E não dá mais para ficar defendendo uma letra ou outra, tipo agora tem mais uma letra para entrar no LGBT… Z… P… Talvez devêssemos questionar a necessidade de ter mais uma letra para representar alguém. Mas sei que esse debate é supercomplicado, porque alguém vai dizer: “Essas pessoas foram oprimidas e isso é uma maneira de você contrabalançar essa opressão”. Então você tem uma letrinha na sigla que funciona um pouco como essa ideia de cotas. Já que há um histórico de exclusão, de desvantagem, então é preciso equilibrar de alguma maneira. Sempre fui mais a favor da gente transcender isso.

Vladimir Menezes Vieira (professor universitário) e Roberto Moschen Junior (gerente de logística), juntos desde 2013.

Matheus e Livio

4_Matheus e Lívio

 

 

Nós namoramos desde os 17 anos. Fomos os primeiros namorados sérios um do outro. Não chegamos a fazer planos de um relacionamento longo, o compromisso aconteceu naturalmente. Não imaginávamos que estaríamos até hoje juntos, mas foi dando certo… Hoje nos consideramos casados, mas optamos por não morar juntos, achamos que é muito cedo. É bom cada um ter seu espaço, até porque já passamos a maior parte do tempo juntos.

Demorou um pouco, acho que um ano, até eu contar para o meu pai. Para ele foi mais difícil encarar. Ele não falava sobre o assunto, mas uma vez, num churrasco, descontou tudo de uma vez e explodiu comigo, praticamente me expulsou de casa porque descobriu que eu estava namorando o Matheus. Não é que ele tenha descoberto tudo nesse dia, ele já sabia que eu era gay. Houve vários eventos na minha vida, desde a infância, coisas bobas que eu nem me lembro mais, mas que sinalizavam… Ele já sabia, sim. Sabia, mas não aceitava. Para ele era uma coisa escondida. Nesse dia do churrasco ele reagiu mal por saber que eu estava me assumindo. Muita gente aceita que o filho seja gay, desde que seja discreto. E foi bem nessa época, mesmo, que a gente começou a assumir que estava namorando.

O curioso é que a grande preocupação dele não era se eu ia sofrer e ser oprimido pela sociedade, até porque ele era um dos opressores. A grande questão, na verdade, é que ele não queria que os outros soubessem que ele tinha um filho veado. Com o tempo, as coisas foram se amenizando e eu prefiro acreditar que ele foi aceitando, do jeito dele. Não tocamos muito nesse assunto.

Já no meu caso, minha mãe sabia que eu era gay desde antes de eu namorar o Livio. Ela é muito esperta, percebia tudo e sacou super-rápido que eu estava com ele. Ela reagiu supertranquila: perguntou e eu falei. Meu pai é que finge que não sabe. Ele sabe, mas desde os meus 15 anos, quando descobriu sobre mim, nunca mais voltou neste assunto. Brigou muito comigo naquela época, me mandou sair de casa também, mas eu não fui, até porque não tinha para onde ir. Mas passou. Hoje ele ignora isso. Às vezes ele vem para o Rio e o Livio está aqui. Mas ele não pergunta, não questiona nada. Gosta do Livio, mas não toca no assunto, não quer ouvir. Mas nem por isso eu me escondo.

As pessoas mudam com o tempo. Veja o caso da minha avó: ela era uma pessoa superpreconceituosa e hoje é muito aberta para essa questão. Foi capaz de me acolher, ama o Livio, comenta nossas fotos no Facebook… Inclusive, é eleitora do Jean Wyllys. Mudou também a relação dela com um irmão mais novo, meu tio-avô, que é gay e sempre se escondeu. Nos últimos anos, ele começou a se abrir um pouco. Hoje, com algo em torno de setenta anos, ele já se permite falar mais do assunto e eles até conversam sobre os relacionamentos dele.

Matheus Freitas (designer) e Livio Mendes (editor, cinegrafista), juntos de 2009 a 2015.