Na maior parte das sociedades democráticas ocidentais já predomina a consciência que aceita com mais naturalidade a diversidade da orientação sexual e de gênero. Graças ao crescente reconhecimento da legitimidade da união homoafetiva, tendemos a considerar como arcaica e superada a discriminação da relação amorosa entre pessoas do mesmo sexo – o “amor que não ousa dizer seu nome”, para usar a frase que Oscar Wilde imortalizou em seu discurso diante do tribunal que o condenou por seus “atos imorais”. Nesses mesmos países, inclusive no Brasil, os movimentos de defesa dos direitos humanos – uma luta histórica contra a injustiça e a desigualdade social – vêm acolhendo, nas últimas décadas, diversos grupos minoritários, entre eles o grupo LGBT. A liberdade de expressão da orientação e da identidade sexuais parecem ser hoje um direito conquistado.
No Brasil, porém, a imagem que se faz dos gays ainda é caricatural e distorcida. Quase sempre está associada à exploração da sensualidade, ao erotismo exacerbado, à reificação da sexualidade – seja para usá-la comercialmente, seja para condená-la como imoralidade pecaminosa. É como se o gay ainda fosse aquela figura à margem da sociedade, aquele personagem meio delinquente, promíscuo, construído pelas práticas históricas da repressão. Acredito que isso seja um tipo de efeito de inércia, herança do tempo em que era considerado crime (ou algum tipo de doença) ser gay.
Com todas as conquistas recentes que desenham uma clara tendência comportamental progressista, é importante reconhecer o imenso trabalho de esclarecimento e combate aos preconceitos que ainda resta fazer. Em muitos contextos sociais conservadores – estejam ou não fundados em dogmas religiosos – ainda se alimenta a crença de que a homoafetividade é um fenômeno antinatural, uma anomalia, uma ameaça aos valores da família… Então, foi a necessidade de questionar essas concepções que me impulsionou inicialmente.
O Brasil teve papel precursor na política de reconhecimento da liberdade de orientação sexual: por meio do Conselho Federal de Psicologia, deixou de considerar a orientação sexual como doença em 1985, antes mesmo da Organização Mundial de Saúde excluir a homossexualidade da lista de doenças mentais. Atualmente, a violência implicada nas práticas pseudopsicológicas da chamada “cura gay” pode descredenciar um profissional de saúde. Entretanto, livrar-se de um estigma tão enraizado na história da nossa cultura demora tempo, e exige transformações de vícios de postura e hábitos mentais que podem levar décadas.
Sabemos que as imagens apresentam realidades, ao mesmo tempo em que criam experiências. As imagens não se esgotam no plano figurativo, mas são plenas de força simbólica, emocional, e povoam a imaginação das pessoas, que através delas ampliam seus repertórios de conhecimento e os horizontes de suas visões de mundo. Sabemos que essas visões podem ser curtas ou amplas, excludentes ou inclusivas, e que têm o poder de promover o ódio ou o amor, o medo ou a paz. E em geral a escolha é nossa.
“O pessoal é político”
Em meu trabalho como educadora, costumo orientar meus alunos nos estudos da história da arte e da fotografia em busca de referências para o desenvolvimento dos seus projetos pessoais. Isso significa pesquisar artistas e autores que tenham trabalhado com as mesmas questões em outros lugares e épocas. O objetivo dessa prática é procurar conhecer outros artistas e obras, buscando cultivar o diálogo e, principalmente, reconhecer-se no campo das questões conceituais e estéticas, sabendo identificar sua linhagem e linguagem próprias. Esse método de trabalho, que valoriza a experimentação pessoal enquanto busca ancorá-la na história, tornou-se um hábito para mim. E foi exatamente esse hábito da pesquisa que me despertou a atenção para a carência de imagens a respeito da vida familiar das pessoas LGBT. Essa ideia me visitou pela primeira vez em 2013 e, a partir daí, comecei a me interessar cada vez mais pelo tema.
Para mim, era uma experiência tão comum de se ver na vida – pessoas que amam alguém do mesmo sexo, namoram, casam, vivem juntas, às vezes têm filhos, às vezes se separam, como qualquer casal dito “normal”; estranhamente, não era comum ouvir falar a respeito dessas pessoas, e menos ainda que esses casais se deixassem ver. Na breve pesquisa que fiz naquele momento inicial, descobri que havia mais textos acadêmicos sobre o assunto do que imagens que dessem conta de mostrar quem são e como vivem as famílias homoafetivas. Até encontrei alguns trabalhos interessantes de fotógrafos estrangeiros, como o da sul-africana Zanele Muholi, que se autointitula “ativista visual”, e os dos americanos Kevin Truong (The Gay Men Project) e Alix Smith (States of Union) – mas nada semelhante havia sido feito no Brasil até então.
Foi quando comecei a idealizar o projeto, sem imaginar aonde ele iria me levar. Afinal, não foi a militância política da defesa dos direitos das minorias LGBT que me fez recorrer à fotografia para abordá-la. Na verdade, ocorreu o inverso: foi uma questão eminentemente visual que me conduziu à esfera política. A ideia de fazer Nomes do Amor nasceu desse incômodo, da percepção dessa discrepância entre a realidade da vida dos homossexuais e a imagem que a sociedade faz dela. Eu queria denunciar os estereótipos e clichês que circulam na mídia e que só fazem alimentar a ignorância e o preconceito. Para mim, era importante buscar as referências visuais de uma experiência que eu conhecia na prática e que, percebia nitidamente, estava muito mal representada no imaginário coletivo.
Talvez antes mesmo de se tornar uma questão consciente, essa era uma necessidade muito subjetiva, uma necessidade de espelhos, de imagens de reconhecimento e pertencimento. Uma necessidade afetiva por imagens. E esse desejo de mostrar como a gente é, sem disfarces, sem artifícios, foi se tornando essencial com o surgimento do Estatuto da Família na Câmara dos Deputados, que nos priva do direito de constituir família como se fôssemos sub-humanos, cidadãos de segunda classe.
O processo
O processo de entrar em contato com os participantes de Nomes do Amor foi totalmente construído a partir do boca a boca. Nessa primeira fase, não houve convocação pública nem uso de Facebook ou qualquer outra rede social. Consegui espontaneamente mobilizar uma rede de contatos que incluiu amigos, colegas de trabalho e alunos, e assim foi, sucessivamente, chegando aos amigos dos amigos – a nossa rede de afetos…
Para começar a construir uma galeria de retratos dos sujeitos que compõem a grande variedade dos novos tipos de casais e famílias, propus fazer uma releitura do retrato tradicional de família, tendo como tema a diversidade dos tipos de casais homoafetivos. Busquei outro tipo de representação, mais próxima da vida das pessoas comuns enquanto casais que se assumem gays publicamente.
Na elaboração das fotos, fiz uma opção estética muito clara: nada de fingir que se tratava de um retrato espontâneo. Afinal, nós estávamos assumindo uma posição, decidindo corajosamente mostrar a cara, dizendo “presente”. Para mim, isso implicava demonstrar consciência da importância de tal fato, de se dispor a estar ali. Implicava também certa sobriedade da pose, o olhar dentro da lente, uma comunicação direta com o público. Essa estética da pose, que vai contra a do instantâneo, remete à fotografia clássica de família (que é, certamente, um dos primeiros produtos culturais gerados pela fotografia em seu processo de democratização do retrato, no século XIX – historicamente associado à construção da identidade burguesa e da memória familiar naquela sociedade patriarcal).
A fotografia dentro de um padrão de qualidade mais tradicional também me pareceu um requisito indispensável. Por isso escolhi usar a Hasselblad, câmera de médio formato, de incrível definição de detalhes. Além da câmera, outro ponto fundamental foi a iluminação bem cuidada, em geral mesclando o flash com a luz ambiente da maneira mais natural possível. Essa proposta de adotar uma estética fotográfica mais clássica se define principalmente pelo cuidado com a iluminação, pelo estudo da pose e pela qualidade da foto, obtida por equipamento analógico para obtenção de melhor definição de imagem na impressão final.
O estilo da pose, porém, distancia-se tanto da pose rígida das fotos antigas quanto da pretensa casualidade dos registros do cotidiano. Trata-se de um estilo simples, sem artifícios de produção, que revela indícios da vida privada do casal, evitando parecer invasivo, voyeurístico ou exibicionista. Em franco contraste com o retrato da família patriarcal, a estética clássica é usada aqui para abordar um tema eminentemente contemporâneo: a união homoafetiva em contexto de crescente naturalização. Este é um ponto muito importante, na medida em que propõe uma estética que é também um tipo de ética e uma forma de atitude política.
Com este trabalho, procuro questionar e fazer pensar os padrões vigentes mais comuns de representação de gays e lésbicas. Através da fotografia de casais reais, o projeto se diferencia das imagens vulgares e dos clichês normalmente associados ao homoerotismo. Retratando-os na simplicidade de sua convivência em ambiente doméstico, pretendi denunciar o artificialismo fantasioso das imagens predominantes na mídia.
Tão eloquentes quanto as imagens são as falas de cada casal. Os depoimentos são resultados de conversas informais na própria sessão de fotos, em torno das experiências de se assumir gay (para si mesmo, para a família, para a sociedade), de assumir o compromisso de uma união, de formalizá-la oficialmente, de eventualmente fazer planos de ter filhos (caminhos possíveis entre a adoção e a reprodução assistida). Neles, optei por fazer uma síntese das falas, sem me preocupar em atribuí-las a um ou outro cônjuge – até porque, na maioria das vezes, o discurso era de fato construído conjuntamente, como numa conversa dinâmica, em que as ideias fluem e são compartilhadas.
Aprendi muito com cada uma das pessoas que fotografei e entrevistei. Hoje tenho ideias mais claras a respeito de tudo que implica não conseguir se enquadrar no padrão heteronormativo imposto (ou esperado de nós) pela sociedade.
Mas aprendi igualmente com os “nãos” que recebi. Foram muitos, cerca de 70% dos convites foram negados. A estes que se recusavam, eu sempre perguntava, delicadamente, o porquê de não se disporem a participar. Para qualquer pesquisa, é importante registrar as explicações. Nem todos quiseram dizer a razão, mas entre os que responderam, as respostas mais comuns foram certa timidez em se deixar fotografar e o reconhecimento do medo de represálias (pelo chefe, no caso dos funcionários; pelos clientes, no caso dos profissionais liberais, e mesmo represálias pelos alunos, no caso dos professores). Em resumo: o medo de se assumir gay plenamente em público e sofrer preconceito ou prejuízo social por isso.
Descobri que, diferentemente do que a expressão “sair do armário” dá a entender, esse movimento de saída não é único, mas múltiplo: os armários são vários. Entre a autoaceitação, ou assumir-se para si mesmo, e assumir-se perante a família, os amigos, no trabalho, em público, etc., há vários níveis ou camadas que nos colocam, cada uma ao seu modo, desafios sucessivos.
A maior parte dos gays acaba se acostumando a se esconder, a esconder seus afetos, seus amores, por medo da discriminação e da violência que com frequência vitimam pessoas que expressam amor e carinho em público. Acredito que a luta pelos direitos das minorias seja uma só, e isso não deixa de reconhecer todas as diferenças e complexidades entre os diversos grupos sociais e étnicos. Apenas propõe que reconheçamos tudo o que temos em comum, no direito de existir, na liberdade de ser quem somos e no dever de respeitar o outro em sua diferença. Sejamos negros, brancos, pardos, índios, heterossexuais, gays ou trans – extrairemos nossa força da união de todos na luta contra a manutenção dos privilégios da sociedade arcaica. Em pleno século XXI, num processo de construção de uma sociedade democrática, não cabe excluir ninguém, mas “acolher e celebrar a diversidade”.
Mostrar a cara dessas famílias na sua simplicidade e diversidade, na sua naturalidade, faz-me acreditar que estamos construindo juntos as referências que nos faltaram quando éramos crianças – e que, com mais motivos, devem ter faltado também às gerações que antecederam a nossa. Acredito na arte como experiência e no processo criativo como aprendizado de vida. Sou grata a este trabalho por tudo que ele transformou – e transforma – na minha vida.