Laura e Marta

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+ ROSA, JOSÉ E CLARISSA

Desde que começamos a falar sobre essas questões publicamente – se assumir gay, constituir família –, a fazer peças de teatro sobre o tema, participar de programas de TV etc., muitas pessoas do Brasil todo começaram a nos escrever para compartilhar seus problemas; outros, para elogiar nossa coragem, porque apesar de se acharem assumidos, não conseguem se abrir no ambiente de trabalho, por exemplo. Como a gente costuma compartilhar nossa felicidade, as pessoas pensam que sempre foi fácil, mas não foi. E foram justamente as dificuldades que nos levaram ao ativismo.

Começa por essa dificuldade de se assumir para a família. Nós vivemos os primeiros cinco anos do relacionamento sem que eu pudesse falar sobre o assunto em casa. Imperava a “lei do silêncio”, o que é um horror, porque você vive como se estivesse fazendo algo errado. Até que um dia, numa conversa sobre cotas raciais, minha mãe falou que eu não sabia o que era sentir na pele o preconceito e a discriminação. Eu não me contive e falei: “Estou com a mulher que amo há anos e não posso falar sobre isso!”. No dia seguinte, ela me acordou para dizer que não havia nada de errado comigo, que reconhecia que o preconceito era dela, que mesmo ela não querendo, estava sentindo aquilo e que ia lutar para superar. Essa promessa fez muita diferença porque a partir daí nós começamos a nos apresentar como casal na família. No início, a aceitação era só na família nuclear, na família ampliada ainda era aquela coisa que não se discute, aquele Natal sozinho… A gente teve a “salvação” pelos filhos, mesmo.

Primeiro buscamos a adoção, pois queríamos quebrar o paradigma do vínculo biológico, embora também desejássemos gerar. Desde o início, planejamos ter três crianças. O processo de habilitação caminhou muito lentamente. Enquanto isso, conhecemos pessoas que já haviam conseguido vencer essa batalha. Foi muito importante ver uma família funcionando com duas mães, com os filhos já registrados em nome das duas, as crianças felizes, isso nos deu muita segurança. No decorrer dessa história, começamos a fazer a inseminação artificial e a Marta engravidou da Rosa. Contamos para a família toda e a receptividade foi fantástica. A Rosa chegou harmonizando tudo. Passados dois anos, chegaram José e Clarissa, ao mesmo tempo: quando eu estava grávida de oito meses do José, recebemos o telefonema da Vara da Infância com a indicação da Clarissa, que na época tinha quase três anos. O processo de aproximação e adaptação durou quatro meses antes dela vir morar conosco.

Os primeiros meses foram difíceis, mas aos poucos as coisas foram se ajustando e eles formaram um trio muito amigo, que vive numa alegria constante. E a gente fez disso uma causa. Há muita gente passando pelas dificuldades que passamos, há uma luta política pelo reconhecimento das nossas famílias, dos registros das crianças, dos nossos casamentos, dos nossos direitos. A gente precisa se engajar.

Laura Castro (atriz) e Marta Nobrega (atriz), juntas desde 2000.

Kika e Carol

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+ TEREZA

Quando nos conhecemos, costumávamos dizer uma para a outra “Nossa, que loucura vai ser a gente como casal!”. Era realmente um sentimento de surpresa. Nós temos o mesmo signo, gostamos das mesmas coisas… Depois de alguns anos juntas, tivemos o desejo de ampliar, do casal virar família. E de novo veio essa sensação, com a mesma intensidade: “Nossa, que família a gente vai ser!”. As pessoas costumam falar “Como vocês são corajosas!”, mas a gente não se sente assim, apenas vivemos com naturalidade. Eu não penso “Eu tenho uma família homoafetiva”. Essa família só existe porque é natural.

É impressionante como um filho legitima algumas coisas. Não há resquícios de preconceito que permaneçam. A criança vem e é só amor, a família toda se rende. Nós sentimos que agora há um respeito maior.

Mas ainda há muita desinformação na sociedade, as pessoas ficam um pouco chocadas. É mais uma surpresa do tipo “Espera aí, mas como assim?”. Algumas perguntam “Mas como foi? Foi inseminação? Vocês adotaram?”. Fica um ponto de interrogação na cara das pessoas. Eu acho muito legal, porque pelo menos elas já verbalizam, falar sobre a questão já é um avanço.

Nós mesmas já nos pegamos na dúvida sobre como lidar com a situação. Certa vez fomos a uma loja de bebês, a Carol estava grávida e a mulher perguntou sobre o pai. Na hora deu uma preguiça de contar tudo, de entrar no assunto, aí eu rapidamente falei “É, é, o pai é grande, sim”. Depois nós refletimos e concluímos que não podemos entrar nessa, não podemos ter essa preguiça. Porque a Tereza está aí, ela já sabe de tudo e tem que ouvir a verdade para que isso fique num lugar tranquilo.
Quanto mais naturalmente a gente trata a questão, mais as pessoas se abrem. Porque o preconceito parte da nossa dificuldade. Ninguém é culpado ou faz por maldade, eles simplesmente desconhecem. Quando começam a conhecer, deixam de lado essa coisa do “diferente”, porque é absolutamente igual: os sentimentos, a maneira como você vai cuidar, as dificuldades…

Quando decidimos que teríamos filhos, começamos a pesquisar, a procurar médico, a pensar se seria com um amigo ou com doador. Conversando com uma amiga que tinha tido filho com um conhecido (que ela havia liberado da responsabilidade da criação), ouvimos dela a seguinte frase: “Na verdade eu sublinhei uma ausência”. A criança sabe que ela tem um pai, que ele existe, só que não liga para ela. E isso foi muito determinante para nós. Optamos pelo doador anônimo porque planejamos ter uma família com duas mães. Sabíamos que, na prática, essa terceira pessoa não faria parte da criação da Tereza.

O mais chocante é o preconceito de algumas religiões, como elas podam os principais valores religiosos, que são o amor, a compaixão, o respeito, e jogam com o ódio, a intolerância. Isso demonstra o quanto elas estão afastadas do ensinamento primeiro da espiritualidade, que é o amor universal, e como preferem este papel de aprisionar, de adestrar as pessoas.

Kika Motta (artista) e Carol Machado (atriz), juntas desde 2007.

Vlad e Roberto

 

 

Hoje em dia é menos difícil para as pessoas assumirem sua homossexualidade. Antes havia uma questão subjetiva muito complicada, independentemente de como a sociedade, os amigos e a família reagiriam. Pelo menos para mim foi assim, eu imaginava que as pessoas iam reagir muito mal. Hoje percebo que os gays têm mais facilidade de lidar com isso, com esse tipo de autocobrança, de cumprir um papel, de casar, ter filhos, todo esse rito social. Estamos descobrindo que há vários outros papéis. Antes não víamos isso, mesmo quando as condições reais não eram tão opressoras quanto imaginávamos. Não estou dizendo que hoje não existam, objetivamente, condições opressoras, é claro que existem, mas agora as pessoas são mais capazes de enxergar quando não são. Naquela época era mais difícil porque já imaginávamos o pior, criávamos mil fantasmas na cabeça: “o que as pessoas vão falar? Como é que sua família vai reagir?”.

O drama estava na minha cabeça, era interno. Não conseguia imaginar qual papel iria cumprir na família, frente aos amigos, sendo gay. Porque só tinha como referência aqueles papéis pré-fabricados, estereotipados, dos programas de humor na TV, tipo Os Trapalhões. Era tudo tratado como piada, o personagem gay era mostrado de forma bizarra, como escracho da sociedade. O que eu poderia pensar que viria a ser? Não sabia qual seria o meu papel, como as pessoas iam me encarar. Conseguir imaginar como as pessoas te veem é muito importante porque nós somos animais sociais, a gente precisa disso, e eu estava tentando me enquadrar socialmente. Hoje existem muito mais referências na mídia, com diversos estilos de vida que uma pessoa gay, como qualquer outra pessoa, pode seguir.

Lembro que certa vez (isso foi em meados dos anos 80) minha mãe estava comentando com meu pai sobre aids. Ninguém sabia nada sobre o que era aquilo, e ela falou de “câncer gay”. As informações eram muito truncadas. Eu estava começando minha vida sexual e fiquei apavorado: “o que é isso? Um câncer que só dá em gay? Será que eu vou pegar câncer?”.

A comunidade gay poderia ter aprendido, por seu próprio histórico, a ser mais tolerante com a diversidade. Não querer ficar enquadrando todo mundo, tipo “Ah, esse cara é um gay enrustido”, “esse é um bi enrustido”, “esse é um hetero enrustido”. E não dá mais para ficar defendendo uma letra ou outra, tipo agora tem mais uma letra para entrar no LGBT… Z… P… Talvez devêssemos questionar a necessidade de ter mais uma letra para representar alguém. Mas sei que esse debate é supercomplicado, porque alguém vai dizer: “Essas pessoas foram oprimidas e isso é uma maneira de você contrabalançar essa opressão”. Então você tem uma letrinha na sigla que funciona um pouco como essa ideia de cotas. Já que há um histórico de exclusão, de desvantagem, então é preciso equilibrar de alguma maneira. Sempre fui mais a favor da gente transcender isso.

Vladimir Menezes Vieira (professor universitário) e Roberto Moschen Junior (gerente de logística), juntos desde 2013.

Matheus e Livio

4_Matheus e Lívio

 

 

Nós namoramos desde os 17 anos. Fomos os primeiros namorados sérios um do outro. Não chegamos a fazer planos de um relacionamento longo, o compromisso aconteceu naturalmente. Não imaginávamos que estaríamos até hoje juntos, mas foi dando certo… Hoje nos consideramos casados, mas optamos por não morar juntos, achamos que é muito cedo. É bom cada um ter seu espaço, até porque já passamos a maior parte do tempo juntos.

Demorou um pouco, acho que um ano, até eu contar para o meu pai. Para ele foi mais difícil encarar. Ele não falava sobre o assunto, mas uma vez, num churrasco, descontou tudo de uma vez e explodiu comigo, praticamente me expulsou de casa porque descobriu que eu estava namorando o Matheus. Não é que ele tenha descoberto tudo nesse dia, ele já sabia que eu era gay. Houve vários eventos na minha vida, desde a infância, coisas bobas que eu nem me lembro mais, mas que sinalizavam… Ele já sabia, sim. Sabia, mas não aceitava. Para ele era uma coisa escondida. Nesse dia do churrasco ele reagiu mal por saber que eu estava me assumindo. Muita gente aceita que o filho seja gay, desde que seja discreto. E foi bem nessa época, mesmo, que a gente começou a assumir que estava namorando.

O curioso é que a grande preocupação dele não era se eu ia sofrer e ser oprimido pela sociedade, até porque ele era um dos opressores. A grande questão, na verdade, é que ele não queria que os outros soubessem que ele tinha um filho veado. Com o tempo, as coisas foram se amenizando e eu prefiro acreditar que ele foi aceitando, do jeito dele. Não tocamos muito nesse assunto.

Já no meu caso, minha mãe sabia que eu era gay desde antes de eu namorar o Livio. Ela é muito esperta, percebia tudo e sacou super-rápido que eu estava com ele. Ela reagiu supertranquila: perguntou e eu falei. Meu pai é que finge que não sabe. Ele sabe, mas desde os meus 15 anos, quando descobriu sobre mim, nunca mais voltou neste assunto. Brigou muito comigo naquela época, me mandou sair de casa também, mas eu não fui, até porque não tinha para onde ir. Mas passou. Hoje ele ignora isso. Às vezes ele vem para o Rio e o Livio está aqui. Mas ele não pergunta, não questiona nada. Gosta do Livio, mas não toca no assunto, não quer ouvir. Mas nem por isso eu me escondo.

As pessoas mudam com o tempo. Veja o caso da minha avó: ela era uma pessoa superpreconceituosa e hoje é muito aberta para essa questão. Foi capaz de me acolher, ama o Livio, comenta nossas fotos no Facebook… Inclusive, é eleitora do Jean Wyllys. Mudou também a relação dela com um irmão mais novo, meu tio-avô, que é gay e sempre se escondeu. Nos últimos anos, ele começou a se abrir um pouco. Hoje, com algo em torno de setenta anos, ele já se permite falar mais do assunto e eles até conversam sobre os relacionamentos dele.

Matheus Freitas (designer) e Livio Mendes (editor, cinegrafista), juntos de 2009 a 2015.

A ousadia de mostrar e dizer

O amor – este sentimento ou emoção que, juntamente com a capacidade de pensar, funda nossa humanidade – tem sido evocado nos discursos individuais e / ou coletivos com que lésbicas, gays, bissexuais e pessoas transexuais reivindicam, em diferentes culturas e sociedades, visibilidade, representações positivas, respeito e direitos. Isto muito antes de os sexo-dissidentes e transgêneros se posicionarem para si mesmos e no mundo por meio das identificações que, hoje, constituem a sigla LGBT; e muito antes de o movimento político em prol de seus direitos emergir na esfera pública. O amor sempre esteve aí, ainda que, no princípio (e ainda hoje em muitos casos, infelizmente), ele não ousasse dizer seu nome.

Mulheres e homens submetidos a violências simbólicas e físicas por parte de instituições como a Língua, a Família, a Igreja, a Fábrica, a Escola, a Clínica, a Justiça e / ou o Estado, em função do que outros homens e mulheres consideravam o Inominável, o Vício, o Pecado, o Desvio, o Erro, a Doença, o Crime e / ou a Desobediência. Esse suposto Mal, na verdade, não passava do amor não reconhecido e reprimido. E se, num primeiro momento, viveram esse amor clandestina e privadamente, não ousando dizer seu nome em público para preservar reputações, relações e vidas, com o tempo e paulatinamente, engajaram-se na luta para dizer seu nome.

Sem evocar publicamente o amor, dificilmente gays, lésbicas, bissexuais e transexuais (no caso das pessoas transexuais, estamos falando de um amor a si mesmo; ao que elas sentem que são de verdade, já que, nesses casos, a questão não é de orientação sexual, mas de identidade de gênero) conquistariam o que hoje chamamos de “visibilidade e orgulho LGBT” – nem o direito ao casamento civil. E sem reconhecer que o amor transformou a instituição Família (nunca podemos perder de vista que esta começa a se transformar justamente a partir do momento em que as mulheres passam a conquistar o direito de se casar por amor, e não por obrigação), as famílias homoafetivas jamais se apresentariam como núcleos de relações duradouras baseadas no amor – nem, a partir daí, reivindicariam seus direitos civis, inclusive o de adotar filhos ou de gerá-los por meio de técnicas de reprodução assistida.

Ainda hoje, o amor permanece um elemento fundamental na luta de LGBTs pela cidadania e dignidade humana plenas. A prova disso é este livro que Simone Rodrigues dá à luz. Reunindo retratos de famílias homoafetivas em situações domésticas, acompanhados de testemunhos sobre diferentes experiências da passagem da vergonha para o orgulho, Nomes do Amor quer mostrar quão familiares são os casais sexo-diversos, com filhos ou não; ou seja, o objetivo do trabalho é mostrar que, de perto, esses casais têm algo em comum com todos os outros: eles se formaram a partir (e perduram por conta) do amor, ainda que este se apresente por meio de diferentes nomes.

Simone Rodrigues nos convida a constatar, em expressivas e emocionantes fotografias, que é o amor que faz a diferença. Se você duvida disso, confira. Se você não tem dúvida, confira igualmente – pois amor nunca basta.